29
de maio de 2006
Voltando à teoria da ensaísta norte-americana Pauline Kael segundo a qual o cinema de que gostamos (inclusive aqueles mais sofisticados e que aspiram à categoria de arte) está cheio de lixo, eu me proponho ver como o lixo pode ser usado com inteligência e pessoalidade. Alex de la Iglesia é um autor, tem seu ponto de vista, sabemos que há uma cabeça por trás das câmaras quando vemos seus filmes; mesmo que o espectador possa arrepiar-se e afastar-se diante dos exageros de tom narrativo em filmes como A comunidade (2000) e 800 balas, talvez dois momentos de leite talhado de seu cinema, é inegável que não podemos classificá-lo como um catador de lixo: ele recicla o lixo de que gosta para produzir sua arte.
Ouço novamente Pauline, que me belisca a orelha: “É de um egocentrismo absurdo chamarmos de arte qualquer coisa de que gostemos –como se não pudéssemos gostar se não fosse; é igualmente absurdo deixar que a publicidade prestigiosa, cara, nos leve a pensar que estamos recebendo arte por nosso dinheiro quando sequer nos divertimos.” (“Lixo, arte e o cinema”, anos 60).
No caso do novo filme de La Iglesia, Crime ferpeito (Crime ferpecto; 2004) há divertimento. O cineasta recupera o poder anárquico de seu humor que estava inteiro em O dia da besta (1995), onde o clima surrealista da narrativa atingia uma precisão exemplar: um autêntico filme de atmosfera com utilização peculiar dos cenários. Como outros espanhóis ilustres, Pedro Almodóvar e Carlos Saura, De La Iglesia é herdeiro do maior dos realizadores espanhóis, Luis Buñuel, especialmente na utilização de um humor negro e jocosamente negro; lá pelas tantas, o protagonista de Crime ferpeito retira numa locadora o filme Ensaio de um crime (1955), um Buñuel menor, de sua fase mexicana, e vemos na tela as imagens do velho filme assombrando as criaturas de Crime ferpeito.
O lixo de que se reveste Crime ferpeito são os policiais baratos, a psicologia rasteira de personagens, a exageração duma comicidade fácil e do desenrolar meio atropelado dos episódios. De La Iglesia usa tanto lixo quanto, por exemplo, J.J. Abrams em Missão impossível III (2006); o que diferencia Crime ferpeito da milionária produção americana interpretada por Tom Cruise é a maneira como este lixo se ajunta narrativamente. No filme de Hollywood o lixo é tudo o que se está vendo na tela, mesmo que, como observa acidamente Pauline, possamos gostar do lixo, não nos envergonhemos; no filme espanhol, o lixo vale como uma estrutura artística, mesmo que Pauline questione a validade desta categoria no cinema.
Brincalhão e bobo, De La Iglesia insere o lixo não para manipular nossas emoções descartáveis, mas para ressaltar o que há de artificioso nos gêneros cinematográficos: metalinguagem. Às vezes ele me evoca os melhores dias do norte-americano Mel Brooks. Sábio diretor de atores para a comédia (como Almodóvar), ele extrai desempenhos irretocáveis de Guillermo Toledo e Mónica Cervero nos papéis centrais (ela está próxima das caracterizações das primeiras aparições de Carmen Maura em filmes de Almodóvar). Se é lixo para o grande depósito de lixo que é o cinema ou se é lixo que sobreviverá grudando-se à expressão “arte do cinema”, talvez não seja muito claro depois da leitura desmistificadora do ensaio de Pauline; mas é um dos divertimentos inteligentes do ano.
Por
Eron Fagundes