18 de outubro de 2006
Nos anos 70 e 80 muito se discutia o cinema do diretor norte-americano Brian De Palma; hoje essas discussões parecem um pouco anêmicas e fora de moda, embora alguns resistentes ainda insistamos em vasculhar estes velhos temas. A dália negra (The black dahlia; 2006) recoloca em cena as vantagens e os problemas do cinema de sempre praticado por De Palma; talvez o círculo que vá interessar-se pelo assunto seja mesmo diminuto, talvez estas questões exalem anacronismo, mas este cinemaníaco não rejeita nenhum bate-papo sobre filmes: pode ser que a cinefilia tenha acabado, como anunciava num desconsolado desabafo o crítico Tuio Becker no meio da década de 90, mas ela pode resistir às cinzas em mim e em alguns poucos por aí. Então vamos a De Palma.
Com o passar dos anos, amadurecendo estilisticamente, De Palma fugiu um pouco ao pastiche colado de obras como Dublê de corpo (1984). Mas suas referências ao alemão Fritz Lang (uma seqüência narrada pelas sombras das personagens) e ao inglês Alfred Hitchcock (certa articulação da montagem, como naqueles planos em que um dos detetives é misteriosa e violentamente morto, dois corpos despencando do parapeito que encima uma escadaria) são tributos mais ou menos servis em A dália negra; apesar da sofisticação visual de que se cerca (a fotografia pastel, a agilidade da câmara, a linguagem que contém muita elaboração à maneira de De Palma), o cineasta está muito longe de atingir o grau de sutileza de Lang e Hitchcock, duas infelizes sombras no processo fílmico de A dália negra.
Mau diretor de atores, como se sabe desde que ele exibiu sem requintes a canastrice de John Travolta em Um tiro na noite (1981), De Palma põe a perder até o tipo interpretativo curioso de Scarlett Johansson, que em Moça com brinco de pérola (2003), de Peter Webber, e em Ponto final (2005), de Woody Allen, foi melhor utilizado por diretores mais competentes na “composição de atores”. De certa maneira, a presença da loira Scarlett é outra aproximação a Fritz Lang, que em A gardênia azul (1952) se valeu do talento da loira Anne Baxter para criar uma personagem esquiva e cuja ingenuidade detém alguma perversidade do realizador; mas Baxter—Lang funciona melhor do que Scarlett—De Palma.
A reconstituição de época pela utilização de um gênero, o filme negro, que fez furor no tempo em que se passa a narrativa (a década de 40 do século XX) é um trunfo formal de De Palma que não é suficiente para guindar a realização a um patamar superior, embora sirva como curiosidade estética. Como A dama na água (2006), de M. Night Shyamalan, A dália negra é uma obra cuja beleza visual não logra dar-lhe qualquer transcendência cinematográfica, categoria de que De Palma chegou mais perto em Vestida para matar (1980) e O pagamento final (1993).
Por fim, devo dizer que nunca li o romance de James Ellroy que forneceu o substrato do roteiro do filme. Os defensores e os detratores do filme de De Palma que leram o livro fecham num ponto: De Palma afastou-se de Ellroy. Faço esta observação final para lembrar uma assertiva do grande romancista mineiro Autran Dourado: não se filma um romance, o que o cinema faz é passar para filme a história do romance e a história é só um dos elementos de um romance ou de um filme. Por exemplo: como não li a obra de Ellroy, não sei se a questão da sósia está no romance, deve estar, mas mesmo que esteja, a evocação da sósia por De Palma tem mais parentesco com esta questão tal como é tratada em Um corpo que cai (1958), de Hitchcock (demais, a personagem de Hilary Swank tem o mesmo nome da criatura vivida por Kim Novak no clássico de Hitch, Madeleine). Por mais que se rejeite a orientação cinematográfica de De Palma, não se pode negar: sua linguagem está sempre envolvida com as ciladas do cinema e as origens literárias de seus roteiros se diluem na sofisticação visual.
Por
Eron Fagundes