UM CINEBALÉ À MANEIRA DE ALTMAN
eron@dvdmagazine.com.br

31 de maio de 2004

Quem lembra de Bodas de sangue (1982), o belíssimo cinebalé do espanhol Carlos Saura, sabe até que ponto a arte da dança pode contribuir para a beleza cinematográfica. Talvez De corpo e alma (The company; 2003), realizado pelo norte-americano Robert Altman, seja o que de mais próximo do filme de Saura pudemos ter, em vinte anos, da fusão de dança e cinema. Altman é tão rigoroso e perfeccionista quanto Saura, tão deslumbrado quanto Saura com os movimentos de corpos e pés dos bailarinos; a câmara de Altman, como a de Saura, é hipnótica em sua contemplação semidocumental da dança (a paixão por ensaios e envolvimentos). Mas há profundas diferenças entre os dois realizadores: o despojamento cênico de Saura não interessa a Altman, que busca desvios para uma fantasia barroca cheia de espelhos e decorações que fogem à transparência de filmar de Saura; a experiência de Altman com narrativas-rio cheias de personagens e histórias entrecruzadas ainda faz efeito em De corpo e alma, que, apesar de sua concentração de cenário, se espalha um pouco espiando outras criaturas além daquelas que centralizam a atenção do drama encenado.

Altman utiliza com muita propriedade os planos gerais para observar a dança de seus atores; e há uma seqüência de primeiros planos de pés de Neve Campbell, atriz, bailarina e produtora do projeto em desempenho extraordinário, que se coloca entre os mais belos momentos do cinema de Altman. Como diz a certa altura o produtor interpretado por Malcolm McDowell, o mesmo que viveu quando jovem o protagonista de Laranja mecânica (1971), de Stanley Kubrick, o que um homem deixa quando passar é sua própria luz; assim, em cada imagem e em cada diálogo, uma e outro filmados com a precisão de Altman, se evidencia que o assunto mais profundo de De corpo e alma é sua reflexão sobre a arte e sobre o artista.

Enfim, temos aqui um fruto cinematográfico elevado de um diretor de cinema que nos últimos anos se vinha contentando com obras menores, como Dr. T. e as mulheres (2000) e Assassinato em Gosford Park (2001).

Por Eron Fagundes