10 de fevereiro de 2008
Da janela de seu quarto, a garotinha Briony Tallis vê sua irmã e um garoto diante duma área de águas (semelhando um pequeno lago artificial) à beira duma fonte. Arregala os olhos quando percebe que sua irmã, que encara fixamente o rapaz, está retirando sua roupa de cima, como se fosse logo após ficar nua. Apavorada e surpresa, a menina volta-se para dentro de seus aposentos, negando-se a ver a cena que cuida impudica. Pronto, deve imaginar Briony, imagina o espectador, ela vai transar com ele ali mesma; o que Briony imagina é também o que o espectador, pela aparência da cena, deve imaginar. E é um golpe na pudicícia duma garotinha inglesa dos anos 30 do século XX. Mas, impaciente e curiosa, a menina torna à janela. Vê sua irmã sair molhada da água, segurando algo na mão. Esta segunda parte da seqüência parece estranha, criando um hiato entre o que aconteceu entre a saída da personagem da janela e sua volta à mesma janela. Porém, o que fica na cabeça da garotinha (e do espectador, que até aí adota seu ponto de vista) é a primeira parte da cena, sua irmã começando a desnudar-se diante de um homem. Pouco depois, poucos passos adiante na montagem, esta cena é filmada pelo lado de fora e então o espectador descobre o que houve: Cecília, a irmã de Briony, e Robbie, o garoto presente, tiveram uma discussão, ele deixou cair um caso quebrado na água e ela, enraivecida, retirou parte da roupa, mergulhou e foi buscar o objeto. A cena, em seus ângulos de visão, é construída em escassos e sintéticos planos, com uma precisão narrativa exemplar: o plano de Briony à janela, os breves planos de Cecília primeiro rígida, depois despindo-se, o plano de Briony que recua para o interior do quarto, novo plano à janela onde Briony vê sua irmã ressurgir das águas; ou os planos enxutos, no lado de fora, em que a câmara apanha a discussão de Cecília e Robbie, o mergulho na água, a volta à superfície.
Em Desejo e reparação (Atonement; 2007) o cineasta inglês Joe Wright discute a relatividade do olhar e a forma como a imaginação de quem olha pode alterar o que está sendo visto. Cinema de certa maneira é sempre uma discussão do olhar. Cuido que ninguém melhor do que o italiano Michelangelo Antonioni captou a aventura cinematográfica de olhar; em Depois daquele beijo/Blow up (1967) Antonioni torna maravilhosamente oblíqua qualquer objetividade do olhar. O que é mesmo que estamos vendo? Esta questão retorna na cena de Briony à janela em Desejo e reparação.
Desde menina, Briony tem pendores literários, é imaginativa, o que aguça a progressão olhar, imaginar, escrever. O barulho de sua velha máquina de escrever vai ecoar persistentemente em muitos trechos da faixa sonora do filme. De uma certa maneira, a construção narrativa de Desejo e reparação vem de uma contemplação sobre os equívocos do olhar. Briony, a protagonista, não se contenta com a objetividade do que vê: imagina em cima. Depois do equívoco à beira da fonte, Briony vai surpreender sua irmã Cecília e Robbie fazendo sexo na biblioteca: Briony os interrompe. E finalmente, ao surpreender uma tentativa de estupro no campo, ela se convence de que era Robbie o estuprador: diante da cena da fonte e da cena da biblioteca, Robbie aparece a seus olhos (como ela mesma diz em seu testemunho contra o rapaz) como um “maníaco sexual”. Isto liquida com a vida de Robbie e com o amor desenhado na biblioteca entre Cecília e Robbie.
No vaivém temporal de Desejo e reparação, chegamos à seqüência final em que Briony é uma velha escritora à espera da morte e revela que escreveu seu último livro (contando sua história, de sua irmã e de Robbie) para que a arte pudesse expiar a vida. Se a jovem atriz inglesa Keira Knightley tem uma interpretação entre lacrimosa e amanteigada que provoca alguns suspiros eróticos, a grande dama Vanessa Redgrave aparece no final como Briony para transformar o melodrama numa inesperada reflexão filosófica. Os autênticos cinéfilos ficamos todos de joelhos diante daquelas breves e profundas aparições de Vanessa no fim do filme.
Sublinhe-se ainda a excelência do roteiro do inglês Christopher Hampton, que há muitos anos fez sucesso ao verter para a direção do inglês Stephen Frears o texto de Choderlos de Laclos em Ligações perigosas (1988). Hampton também dirigiu alguns filmes preciosos, Carrington (1994) e O agente secreto (1995), este último extraído dum romance do inglês Joseph Conrad de 1907. Em Desejo e reparação Hampton soube criar as condições de linguagem para que o romance de Ian McEwan se convertesse em peça de filmagem nas mãos de Wright, que ainda e sempre parece um herdeiro cinematográfico da tradição novelística do século XIX, como já ficara plasmado em seu filme inicial, uma incursão pelo universo da ficcionista inglesa Jane Austen, Orgulho e preconceito (2005).
Por
Eron Fagundes