23
de julho de 2003
O cineasta
paulista Alain Fresnot realiza seu projeto mais
audacioso com Desmundo (2003), adaptação para o
celulóide de um dos muitos romances históricos de
Ana Miranda. Fresnot, realizador de Lua cheia
(1989) e Ed Mort (1996), exacerba a dureza de
linhas de seu cinema ao fazer sua câmara mergulhar nas origens
da história brasileira; o século XVI nacional é
reconstituído em toda a precariedade de seu primitivismo
e toda a miséria de sua insociabilidade. Para tanto, Fresnot
busca um rigor formal meio inusitado para os padrões comerciais;
se Osmar Prado tem um desempenho voraz como o fazendeiro quinhentista
que compra uma jovem para casamento e Simone Spoladore é
sensível na pele desta jovem vendida, a direção
de arte de Adrian Cooper faz notáveis redemoinhos para
recapturar um passado estranho (e que nem parece nosso) e o diretor
Fresnot chega ao clímax de sua pretensão de fidelidade
histórica ao construir diálogos em português
arcaico, de acordo com as linhas sugeridas pelo filólogo
Helder Ferreira. É verdade que não se sabe bem que
português arcaico era falado na colônia, os registros
para a posteridade são o do português arcaico escrito
e a distância entre a língua escrita e a língua
falada era ainda mais acentuada nos tempos de antanho; é
verdade também que Fresnot comete uma concessão
comercial ao legendar o português antigo com letreiros em
português contemporâneo, o que ameniza a perplexidade
do público mas diminui o poder de estranhamento iniciado
pela imagem; todavia são problemas que não retiram
a beleza e o esforço brilhante desta obra cheia de dignidade
de um cinema brasileiro que já não se faz.
Desmundo,
de certa maneira, se parece com o clima de alguns filmes do português
Manoel de Oliveira, especialmente o maravilhoso Palavra
e utopia (2000), cuja atmosfera de tempo parece imitada,
à distância, por Fresnot. Na seqüência
em que marido e amante se enfrentam, apontando as armas um para
o outro, disputando a mulher, a câmara movendo-se circularmente,
o cineasta refaz uma cena de lugar-comum do cinema americano,
dois homens se apontam armas, mas com uma inventividade formal
que remete, ainda que palidamente, ao cinema de Glauber Rocha;
o tiro (tensionado, esperado) fecha a seqüência, um
brevíssimo intervalo de escuridão da tela, corte
para o grito de Simone (ela já não está apavorada
com a briga de seus homens, mas está dando à luz
um bebê, cercada por índias debochadamente risonhas,
numa cena de surrealismo pré-histórico). A derradeira
imagem é a deste bebê, numa rede com a mãe
(a rede está sendo carregada pelos empregados do fazendeiro,
que segue na frente), bebê que não se sabe se é
legítimo ou bastardo, talvez filho do amante morto pelo
marido (quem sobreviveu ao duelo é o marido, como se depreende
do conteúdo das imagens finais). Origens do Brasil: legitimidade
ou bastardia?
Por Eron Fagundes
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