O CENÁRIO É O CARRO
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24 de novembro de 2003

O iraniano Abbas Kiarostami é hoje, tal qual o foi outrora o francês Robert Bresson, um cineasta capaz de estabelecer conceitos revolucionários para o cinema com poucos recursos: o despojamento como meta estilística. Mesmo para o espectador habituado aos desafios do realizador, Dez (Ten; 2002) surpreende pela capacidade de Kiarostami ir interessando-nos em suas histórias valendo-se o mínimo possível dos artificialismos do espetáculo; dificilmente algum outro diretor faria uma narrativa tão profunda e rica utilizando o cenário único de um carro para mover suas personagens. O carro como cenário ou movimento de câmara sempre cativou Kiarostami; mas em Dez ele radicaliza essa sua obsessão: quase que a totalidade da película, inteiramente dialogada, se passa dentro do automóvel da protagonista, uma mulher iraniana rebelde numa sociedade claustrofóbica e repressiva, tão rebelde que se divorciou do primeiro marido enfrentando as iras do filho e está casada com outro homem (no Ocidente esta situação pode parecer normal, mas pensemos nos arcaísmos morais do Irã).

A radicalização formal de Dez, filmado (ou gravado, como quer o crítico Luiz Carlos Merten) em digital, parece atualizar uma velha aspiração plasmada na obra-prima Toni (1934), do francês Jean Renoir. Dizia Renoir que buscava o natural em seu filme: que os atores se comportassem como se não soubessem da presença da câmara. Captar o espontâneo da realidade. Um semidocumentário num sentido diferente da retórica visual de Cidadão Kane (1941), do norte-americano Orson Welles. Dez é um avanço para a eliminação de certos conceitos de documentário; o que neste novo Kiarostami aparece é o desejo intenso de recriar a realidade como se a realidade estivesse ali diante das câmaras, pronta para ser transposta em imagens de cinema sem interferência de diretor algum. Em Close up (1989) Kiarostami fez algo semelhante, utilizando a persona cinematográfica de seu rival no cinema iraniano, Moshen Makhmalbaf, em que um episódio curioso de fato acontecido era revivido diante das câmaras pelas próprias pessoas que o tinham anteriormente vivido no cenário real. Em ABC África (2001) Kiarostami tentou o documentário, analisando a situação das mulheres ugandenses. Em Dez a mulher iraniana –suas fraquezas, suas dependências, sua força—é o centro temático. Mas as possibilidades digitais de Dez permitem ao diretor iraniano levar mais adiante as intenções de Renoir e aquilo que se esboçava na obra pregressa de Kiarostami.

São dez as seqüências do filme. Começa pelo longo plano-seqüência em que a protagonista discute com seu próprio filho, um menino: a câmara fica cerca de vinte minutos presa na face da criança, os diálogos são espontâneos, está eliminada toda construção, voz-in do garoto, voz-off da mãe, e fim de questão, quem lograria tanta complexidade com tão pouco? Depois várias passageiras cruzam pelo carro da protagonista: uma debochada prostituta, uma amarga mulher abandonada por um homem, uma jovem que cortou todo o seu cabelo e na penúltima seqüência vai proporcionar uma das cenas mais tocantes do cinema moderno.

Diz-se que, soltando os atores a dizerem o que lhe vem à cabeça diante da câmara digital, Kiarostami estaria buscando a eliminação do autor (o indivíduo), assim como o desejavam os realizadores dinamarqueses do Dogma 95. Ocorre que, tal a personalidade própria e única adquirida pelo filme (assim como ocorria com os dinamarqueses), o autor volta à cena: é tão precisa a construção cinematográfica que nenhum outro indivíduo seria capaz de fazer o filme assim.

Por Eron Fagundes