25
de julho de 2003
Quem
vir Dirigindo no escuro (Hollywood ending; 2002),
o novo filme do norte-americano Woody Allen, imaginará
que a notável sacada do cineasta cego é original
do cinema de seu realizador, assim como o foram a do homem-camaleão
em Zelig (1983), a da personagem-que-sai-da-tela
em A rosa púrpura do Cairo (1985) e a
da criatura desfocada em Desconstruindo Harry
(1997). Allen às vezes se repete em suas incursões
pelas narrativas intelectualizadas, de fundo europeu, mas aqui
e ali apresenta metamorfoses bastante interessantes quando acresce
à sua iconografia cinematográfica estas sacadas
pessoais. Os três filmes aludidos e o atual Dirigindo
no escuro estão entre suas realizações
mais fascinantes graças a estes ícones que Allen
expõe com tanta graça.
Não
sei se Allen, cinéfilo empedernido, viu, mas a figura do
cineasta cego foi erigida num dos episódios mais absurdos
e perturbadores de O ataque do presente contra o restante
do tempo (1985), a obra-prima do cineasta alemão
Alexander Kluge que poucos conhecem e que é todavia um
dos mais revolucionários filmes da história. Um
cineasta cego dirige um filme e sua assistente lhe descrevia as
imagens num copião. É claro que Allen está
longe do sarcasmo crítico alucinatoriamente germânico
de Kluge; Allen adota uma ironia muitas vezes mais leve e assimilável
por seu público, intelectualizado mas indelevelmente preguiçoso
para uma ousadia formal como a de Kluge. Se a personagem do cineasta
cego não chega a ser nova no cinema, nova é a maneira
muito pessoal com que Allen nos diverte compondo, como diretor
e como intérprete, um ser que metaforiza todas as questões
de seu cinema.
Narrado
muitas vezes em harmoniosos planos-seqüência, evitando
o habitual plano-contraplano –desde a cena inicial em que
os produtores do filme dentro do filme, entre eles uma ex-mulher
do protagonista, decidem por Val, o cineasta vivido por Allen,
para dirigir o novo filme do estúdio--, Dirigindo
no escuro é uma lama irônica que o realizador
joga sobre Hollywood e o cinema atual, que às vezes dá
mesmo a impressão de ser rodado por pessoas cegas, tantos
são os defeitos que topamos na tela. Val tem uma cegueira
psicológica às vésperas de começar
a rodar o filme e todo o divertido jogo de gestos e metáforas
é encenado e interpretado com extrema habilidade por Allen
e sua turma.
Como
ocorria em Celebridades (1998), Allen é
bastante cruel em sua visão da imprensa como um mal necessário
para o artista. A figura da repórter enxerida que ao mesmo
tempo em que vai divulgar o filme vai intrometer-se demais no
mundo privado de todos, é o símbolo da revolta do
diretor contra os jornalistas desde a repercussão, no início
da última década do século passado, de sua
separação da atriz Mia Farrow para ficar maritalmente
com a filha adotiva de sua ex-mulher, acrescendo que a nova esposa
era quarenta anos mais nova do que ele.
Allen
é inegavelmente feliz na conclusão de seu abotoado
teorema cinematográfico, quando revela que houve quem (a
imprensa americana) detestasse os resultados da realização
do cineasta cego e quem (a imprensa francesa –“ainda
bem que existem os franceses” é uma frase divertida
de Allen no fim da fita) os amasse loucamente. Sintomático:
independentemente da miopia do cineasta, seu cinema, com certas
características européias (seus passeios pelo universo
do sueco Ingmar Bergman, dos italianos Michelangelo Antonioni
e Federico Fellini, do francês Eric Rohmer são palpáveis),
geralmente é mais apreciado na Europa do que nos Estados
Unidos.
Por Eron Fagundes
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