18 de outubro de 2006
O realizador fluminense Eduardo Mocarzel acredita muito nas características da imagem em bruto dum documentário; a própria função da montagem cinematográfica deve parecer algo espontâneo e solto, a interferência do narrador (a câmara e o homem que a maneja) deve ser suave, deslizar como uma sombra pela realidade. Em Do luto à luta (2005) o cineasta permite que seu estilo estilhaçado de filmar adquira uma consistência e uma densidade que faltavam a À margem da imagem (2003); se no filme anterior este despejar de imagens parecia uma coisa estilisticamente rude e tornava o conjunto difuso e aleatório, em Do luto à luta surge uma intenção mais clara desde o início da fita. Certamente Mocarzel achou um tema que lhe exigiu mais sinceridade estética (a síndrome de Down lhe é cara pois sua filha Joana pertence a este fenótipo) e soube, dentro desta aparente desorganização de um processo fílmico, topar uma impressionante unidade emocional.
Todos dizem, e se tornou um dito que acaba não significando nada pela falta de reflexão das coisas que se dizem automaticamente como clichê, que o cinema deve emocionar. De que emoção falamos? Boa parte do público de cinema, ao ouvir falar em emoção, pensa logo nos filmes de ficção popularizados pelo cinema americano habitual: são os códigos conhecidos de linguagem. Neste sentido, natural que um documentário (um gênero que teoricamente propõe um compromisso mais direto com a realidade: será que a vida real não contém emoção?) seja desdenhado pelas platéias como falto de emoção; mais ainda quando este documentário trata de assuntos tabu, desglamurizando a tela com as perturbadoras imagens de criaturas sem aquele charme que a sociedade exige de pessoas consideradas como bonitas e agradáveis. Resultado: pouca gente se dispõe a deslocar-se para o cinema visando a ver um documentário sobre pessoas com má formação genética. Na sessão em que estive presente, eu fui um espectador único. Cuido que há entre mim e alguns filmes fracassos de público uma ligação forte, é inevitável, questão da natureza do ser: O sol, caminhando contra o vento (2005), de Tetê Moraes e Martha Alencar; Anjos do sol (2006), de Rudi Lagemann; e Espelho mágico (2005), de Manoel de Oliveira, foram sessões de escassos espectadores quando os vi (no Oliveira, além de mim, mais outro indivíduo), e segundo meus conceitos estes três trabalhos têm um universo cinematográfico riquíssimo, que preencheu de emoção as salas vazias dos cinemas. É também o caso de Do luto à luta; mas, em relação ao filme de Mocarzel, me ocorre outra questão: me parece que, se o público vencesse o preconceito contra o documentário, descobriria na realização um coeficiente emocional de boa comunicação com o espectador. Se os outros três filmes pressupõem um gosto e um conhecimento mais específicos, Do luto à luta exige do observador a singela capacidade de se emocionar com algumas trajetórias humanas.
Mocarzel esmiúça a questão dos pais das crianças com síndrome de Down. Com inegável clareza vai semeando no público o sentimento de que estes seres têm uma lógica e uma emotiva diferente do comum dos mortais, mas muitas vezes são mais lúcidos e brilhantes do que os chamados normais; a longa seqüência com um bibliotecário madurão com síndrome de Down é um dos pontos altos das revelações do cineasta.
Dentro do exercício de “descontrole formal” que tanto interessa ao documentarista Mocarzel, Do luto à luta vai entregar a direção, em certo momento, a um casal síndrome de Down; o garoto e a garota, cada um a seu modo, toma a câmara do realizador e constrói uma cena no hospital em que um pai, ante o nascimento de um filho, recebe do médico a notícia de que a criança é portadora do defeito genético. O rapaz diz de seu amor ao cinema do norte-americano Steven Spielberg e quer a todo o pano convencer o diretor Mocarzel de que o exercício de direção na cena do hospital é uma homenagem ao gosto de Spielberg pelo efeito. Com esta citação a Spielberg (nascida um pouco do acaso como ocorre ao se tratar duma figura real, de documentário), Do luto à luta revela a impotência e as características impossíveis de nossas referências culturais: um jovem com síndrome de Down, desprovido de recursos estéticos e financeiros, quer ver o mundo pelas lentes de Spielberg; em vão, todavia
Por
Eron Fagundes