16
de fevereiro de 2004
À maneira
de alguns filmes do alemão Rainer Werner Fassbinder (As
lágrimas amargas de Petra von Kant, 1971; Effie
Briest,
1974), Dogville (2003), realizado pelo dinamarquês Lars
von Trier, expõe uma ossatura teatral para provocar a
linguagem cinematográfica. Na verdade, a exposição
do cineasta nórdico está ainda mais exposta do
que em Fassbinder: abdicando do realismo de encenação
que marcou sua presença no Dogma 95, Von Trier parte em
busca do artificialismo narrativo experimental. Em Dogville é como
se a câmara documentasse uma marcação exasperantemente
teatral incluindo algumas formas literárias de dizer as
frases; o cenário é um palco em que as divisões
de cena são assinaladas por giz, definem-se as casas e
as ruas de maneira ilusória, um adrede faz-de-conta, os
atores deslizam como se estivessem no espaço teatral,
há um narrador-over que parece extraído das páginas
de um livro. O choque inicial para o espectador cinematográfico
perturba; mas o realizador usa de suas três horas de projeção
para, com paciência, fazer a mente do assistente adaptar-se
a um jogo visual tão provocativo quanto original. O resultado
assombra.
Dizem
tratar-se do pontapé inicial de uma trilogia do
diretor sobre os Estados Unidos da América. Sua inventada
Dogville metaforiza uma América torpe, caricatural, amorfa,
corrupta. A figura da mulher perseguida por gângsters que
se esconde numa comunidade onde, para obter proteção,
tem de prestar serviços domésticos e finalmente
até sexuais, impressiona pelo grau de perversidade que
Von trier geralmente coloca em suas tensas e diferentes personagens;
Nicole Kidman, que viveu uma faxineira pouco convincente em Revelações (2003), de Robert Benton, é inteiramente devoradora nas
mãos de Von Trier como a doméstica da comunidade.
A
seqüência final em que os gângsters realizam
uma chacina atingindo todos os indivíduos de Dogville,
não escapando mulheres, criança e velhos, parece
fornecer uma chave para a nova obra-prima de Von Trier. Dogville
talvez seja a interpretação européia para
os Estados Unidos depois de 11 de setembro de 2001; segundo o
cineasta dinamarquês, o que os terroristas árabes
teriam solapado em 11 de setembro seria a falta de forma da América,
uma América tão prepotente quanto imbecil, vejamos
as criaturas que se movem no parco ambiente de Dogville; em suas
cenas conclusivas, os tiros de Dogville reconstituem, em microcosmo,
o evento do World Trade Center. A polêmica é: estaria
um intelectual europeu culto como Von Trier justificando o 11
de setembro, decretando o início da barbárie?
Sim
ou não, isto não altera a extraordinária
profundidade de Dogville, onde Von Trier se expõe tanto
a um desafio formal quanto a um desafio de pensamentos históricos
contemporâneos.
Por Eron Fagundes
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