A GEOMETRIA POÉTICA DOS CENÁRIOS E O SONAMBULISMO DAS PERSONAGENS
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25 de julho de 2003

A elaboração formal dos filmes do japonês Takeshi Kitano está repleta de um rigor que transforma suas narrativas antes de tudo em eventos plásticos extremamente modernos e radicais em sua linguagem. O primeiro trabalho de Kitano visto por aqui, O mar mais silencioso daquele verão (1991), foi o exemplo mais exigente e acabado deste cinema de ritmo exasperantemente contemplativo, prolixo mesmo em seus planos reiterados e esticados, capaz de resgatar um pouco da escrita dos filmes do italiano Michelangelo Antonioni nos anos 60; em Brother, a máfia japonesa Yakuza em Los Angeles (2000) Kitano revelava seu lado de Sam Peckinpah japonês, ao incrustar os elementos de violência numa realidade plástica inovadora.

A excelência da arte cinematográfica de Kitano chega a uma de suas formas mais apaixonantes no atual Dolls (2002), em que as idas e vindas da narrativa visual, característica do realizador, não impõem ao filme aquela hesitação formal que incomodava um pouco em Hanna-bi, fogos de artifício (1997), todavia uma bela e criativa película. Dolls vai mais além da beleza e da criatividade: é uma força de linguagem que, desde as primeiras imagens (aquele teatro de bonecos nipônico que é o prólogo do filme), vai penetrando no cérebro do observador, fazendo com que sonhemos com as metáforas do cinema.

A exuberância de símbolos cênicos é um dos achados de Dolls. E Kitano, já a partir da precisão de roteiro e depois na forte execução de sua direção, domina sua riqueza formal, impedindo que o trem de signos descarrile. Há três histórias básicas que circulam pela narrativa, todas entrecruzando-se, mas são muitas e inusitadas personagens capazes de cativar o espectador por sua dose de dor e vida. O estribilho visual mais insistente de Dolls é a imagem do casal amarrado um ao outro por uma corda, ela perdeu a memória depois duma tentativa de suicídio porque a família dele estorvava o casamento dos dois: este insólito casal vaga por todas as fases do filme, ora perdidos num encantatório vale florido, ora cruzando as nevascas que compõem certos cenários, caracterizando-se a extraordinária utilização que Kitano faz da natureza como ambientação (a primavera e o inverno, assim como aparecem o verão e o outono) –esta utilização da natureza é benfazeja herança do elaboradíssimo cinema europeu dos anos 60 e com respingos em alguns realizadores dos anos 70 (o suíço Alain Tanner e seu memorável Amantes no meio do mundo, 1974).

Há imagens que instam em circular na retina do assistente. As esculturas de pequenos anjos, de quem a câmara inicialmente se aproxima num movimento brusco. Uma folha que se escapa de seu meio natural e rola pela água (o elemento aquático, vindo de outros filmes de Kitano, se insinua novamente). A mulher que espera seu namorado, sentado pateticamente num banco, segurando um almoço que pretende dividir com seu amado. O paralítico ríspido e seu acompanhante bobo e submisso.

Uma geometria poética e personagens sonâmbulos é o que parece propor Kitano em todos os seus filmes. Como o fazia Antonioni na obra-prima A noite (1960). Títeres ou bonecos: a burguesia italiana dos anos 60 ou os seres perdidos no desenvolvido Japão de um visionário Kitano que está arregalando seu olho cinematográfico para o século XXI.

 

Por Eron Fagundes