23
de setembro de 2003
O cineasta
brasileiro Moacyr Góes, que buscou perigosamente em Dom
Casmurro (1900), de Machado de Assis, a fonte para Dom
(2003), seu filme de estréia, afirmou que uma obra literária
deve ser recriada e nunca transposta simplesmente de uma linguagem
para outra. Visando a evitar que o espectador queira comparar
livro com filme, o que inevitavelmente prejudicaria a fruição
do espetáculo cinematográfico, Góes esforçou-se
por imaginar o que seria um Machado contemporâneo, na época
do DNA (que retiraria da trama um de seus fundamentos, que é
a análise feroz da dúvida instalada no espírito
de Bentinho) e da mídia; com absoluto desleixo e um formato
visual televisivo e opaco em seu despojamento cênico, Góes
acabou por vulgarizar o inquietante universo do maior ficcionista
nacional.
Se
na primeira parte da narrativa Góes evita a aproximação
com o enredo machadiano, compondo personagens que seriam espelhos
atuais das figuras de Machado (o romance é referido em
algumas passagens dos diálogos, alude-se ao fato de que
o Bento do filme foi assim batizado em homenagem ao Bentinho do
livro e a Capitu do Bento do filme na verdade se chama Ana e,
como no livro, se trata dum amor de infância, com a diferença
de que nunca mais se tinham visto desde a meninice ou primeiras
adolescências), depois a base dramática joga-nos
na inevitável comparação a que o diretor
queria fugir: Bento e Ana apaixonam-se e casam, os problemas conjugais
surgem quando ela decide investir em seu talento de atriz nas
mãos do diretor Miguel, amigo de Bento; o nascimento do
filho Joaquim e a explosão de ciúme, gerando a possibilidade
de um triângulo amoroso (o casal e o amigo) e de um bastardo,
faz que tudo torne a Machado de Assis. Difícil deixar de
constatar: no lugar da profundidade e da veia lingüística
do mestre de Cosme Velho, a superficialidade brasileira da atualidade.
A aguda filosofia ficcional de Machado converte-se num melodrama
à sombra das telenovelas atuais, o que não deixa
de ser desolador, pois revela a perversa influência da pouca
inspirada estrutura dramática das novelas televisivas sobre
as possibilidades visuais de hoje, no cinema ou na televisão.
Há muitos anos, o realizador Geraldo Vietri rodou Que
estranha forma de amar (1977), partindo de Iaiá
Garcia (1878), e o que se viu era um teleteatro demasiadamente
composto; Dom, embora sem todas as ingenuidades
de Vietri (afinal, de lá para cá, mesmo aos trancos
e barrancos, o cinema brasileiro teve lá sua evolução
técnica), tem um pouco disto, com seus cenários
meio sem função e sua movimentação
cênica esquemática, tudo endossado por uma carga
dramática rasteira. A despeito de seus problemas, Memórias
póstumas (2001), de André Klotzel, era
muito mais cinematográfico como possibilidade de recriar
Machado de Assis em imagens.
O elogiado
desempenho de Maria Fernanda Cândido é muito trivial
e, ainda que esforçada, a atriz não chega à
profundidade duma personagem que do meio para o fim busca clara
inspiração na inolvidável Capitu de nossas
primeiras leituras. Marcos Palmeira, que andou bem em Villa-Lobos,
uma vida de paixão (2000), de Zelito Viana, está
inesperadamente apático no papel de Bento; a seu ciúme
falta a expressividade dos sentimentos dum ser de Machado de Assis.
Ainda,
em termos de visões de Machado de Assis no cinema, é
melhor evocar a lentidão sombria de Capitu
(1967), de Paulo César Saraceni, ou mesmo o tresloucado
experimentalismo de Julio Bressane em Brás Cubas
(1985). Góes, querendo imaginar como escreveria Machado
de Assis nos dias de hoje, reduz o mestre da prosa brasileira
a um cronista de jornal bastante fútil e passageiro. E
mais: querendo evitar a comparação com o romance,
ao usar do artifício da modernização (neste
aspecto sou mais um esquecido e espezinhado filme de Roberto Santos,
Quincas Borba, 1986), o cineasta mais provoca
do que afasta esta comparação na mente do espectador.
Por Eron Fagundes
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