04
de outubro de
2004
Ainda
enquanto os créditos desfilam na tela, a atriz Débora
Falabella, que está numa aula de balé, dirige-se
para a câmara num primeiro plano e exclama algumas frases
suspiradas entre reticências: “Isto é um filme...
Isto que a gente vive... A vida é como um filme que a
gente vê no cinema.” E durante toda a narrativa de
A dona da história (2004) o realizador Daniel Filho irá acentuar
esta relação –um pouco metafórica,
um pouco realista—entre o viver e o representar para o
celulóide. Além de estabelecer uma identificação
de vida para as possibilidades de reconstruir hipoteticamente
o passado (o remontar sua própria vida perseguido pela
protagonista), estas orações que abrem o texto
do filme são uma profissão de fé de cinéfilo,
um cérebro para o qual tudo é visto através
da lente de uma câmara cinematográfica. Daniel Filho é bem
isto: um autêntico homem de cinema, quer como ator (lembremos
suas espontâneas personagens de Chuvas de verão,
1977, de Carlos Diegues, e Romance da empregada, 1987, de Bruno
Barreto), quer como diretor; embora passe a maior parte do tempo
nos estúdios de televisão, Daniel não se
deixou contaminar inteiramente (os problemas de seu filme anterior,
A partilha, 2001, nascem da ausência de vôos da peça
de Miguel Falabella em que se inspirou o roteiro).
Daniel
tem o sentido do cinema, como se evidencia em A dona
da história. Uma categoria meio complicada de se definir,
mas que o espectador experimentado sente no resultado de um filme:
senso cinematográfico na utilização dos
planos, cenários, atores. Como confessou em entrevistas,
Daniel fia-se muito no roteiro de um filme, na história
que vai ser contada, aparentemente não se impõe
como um autor (Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Walter
Hugo Khouri, para revelar alguns exemplos bem palpáveis
de assinatura cinematográfica); seu esforço é dar
categoria fílmica às inquietações
humanas da peça de João Falcão. O jogo de
remontagem do passado a partir do momento a que chegou a personagem,
cinqüentona e mais de trinta anos de casamento, eis o que
propõe A dona da história para um observador que,
se estiver na maturidade, será necessariamente compartícipe;
e Daniel executa com brilho e naturalidade estas idas e vindas
entre o passado e o presente, fundindo tudo num único
cenário e permitindo que Débora Falabella (Carolina
jovem) e Marieta Severo (Carolina madurona) contracenem juntas
como dois pólos temporais da mesma criatura.
Bom
ator e diretor de atores cheio de grandeza e generosidade, Daniel
extrai de seu elenco a química certa. Logra inclusive
driblar certos maneirismos interpretativos como os que Antônio
Fagundes habitualmente apresenta.
Suave
e nostalgicamente fotografado e musicado, estamos diante de um
belo filme, que vem reforçar o bom momento do cinema
brasileiro, aqui e ali deslustrado por algumas realizações
pretensiosas e medíocres, como Irmãos de fé (2004),
de Moacyr Góes, e Olga (2004), de Jayme Monjardim.
Por Eron Fagundes
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