AS DUAS (MUITAS) FACES DE GODARD
 

 

São dois filmes em um. Ou muitos filmes em um. A metralhadora cerebral do cinema nos anos 60 está de volta em Elogio ao amor (Éloge de l'amour; 2001) com uma vitalidade intelectual e fílmica de que já não se suspeitava. O cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard está por dentro da revolução cinematográfica e mostra em seu novo trabalho todo o seu poder de fogo.

A primeira parte de Elogio ao amor foi rodada em preto-e-branco, bitola 35 mm, evocando um extraordinário rigor bressoniano dos anos iniciais de Godard. Um diretor de cinema em busca duma atriz para seu filme move as palavras e as imagens destas primeiras cenas. Na segunda parte da realização, recuando-se dois anos no tempo, Godard vale-se das cores e substitui ao rigoroso 35 mm um desabusado visual de vídeo digital, como já o fizera num curta-metragem, o extraordinário Da origem do século XXI (2000); o mesmo diretor de cinema que protagoniza a primeira parte está em cena nesta segunda parte, agora às voltas com um membro da Resistência francesa que vendeu os direitos de sua história a Hollywood para uma produção a ser dirigida por Steven Spielberg. São duas partes, mas há múltiplos Godard em cena: são as faces de um gênio da sétima arte. Como todo gênio, Godard irrita a muitos; como todo gênio ácido, a ironia com que ele se refere a um ícone do cinema comercial, Spielberg, deve desagradar à grande massa. Godard é assim mesmo: para poucos. (Segundo um dos detratores de Elogio ao amor, ao comparar o estágio atual da filmografia do realizador com os padrões mais clássicos de algo como O desprezo (1963), que igualmente se debruça sobre a aventura do cinema e também ironiza Hollywood, atualmente Godard teria deixado de fazer cinema para fazer filosofia. Pergunto: não estaria ele fazendo um cinema filosófico? Coisa requintada, é verdade, coisa muitas vezes complexa e irritante para o cérebro cinematográfico normal; mas que grande prazer Godard pode proporcionar aos que não vêem na cultura um simples puxar de talão de cheques.)

Citatório como sempre, Godard presta homenagem a um de seus mestres, o francês Robert Bresson. A primeira homenagem é cinematográfica. As pessoas estão na fila diante do cartaz de Pickpocket (1959), obra-prima de Bresson, um dos mais belos tratados cinematográficos sobre a redenção pelo amor; um senhor evoca famosa frase do protagonista bressoniano à sua amada: "Jeanne, são estranhos os caminhos que me levaram a você". De certa maneira, uma das discussões do filme de Godard é também o amor; uma de suas colocações mais absurdamente godardianas é esta: "o Estado é incapaz de apaixonar-se". A outra homenagem que Godard faz a Bresson é de natureza crítica: uma personagem lê trechos de Notas sobre o cinematógrafo, a Bíblia cinematográfica em palavras do autor de Uma mulher suave (1969).

Cheio de planos-seqüência fixos (há um em que um casal fala desdramaticamente de costas para a câmara, acentuando-se o despojamento), com alguns raros travellings inseridos, Elogio ao amor utiliza a palavra (falada ou escrita, pois Godard recorre amiúde a letreiros) e a imagem de maneira extraordinariamente pessoal. Uma aproximação a sua jaculatória fílmica foi dada por Após a reconciliação (2001), rodado por sua mulher Anne-Marie Miéville e em que Godard participava como ator; mas ao deparar com Elogio ao amor, o observador sente que o toque de Godard é único e só ele sabe fundir com perfeição os liames mentais que há quarenta anos fazem as delícias de seus admiradores.

Por Eron Fagundes

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