19 de setembro de 2007
Silvio Tendler é um documentarista brasileiro bastante louvado por obras como Os anos JK (1980) e Jango (1984), obras voltadas para retratos históricos de épocas determinados pelas figuras de dois dos maiores líderes políticos que o país já teve. Em anos recentes, rodou Glauber, o filme —labirinto do Brasil (2003), o que reforça a idéia de que o cinema de Tendler se sente atraído pelos grandes homens. Em seu novo documentário, Encontro com Milton Santos (ou: o mundo global visto do lado de cá) (2006), esta tendência é notavelmente realçada, pois o valor essencial da realização está centrado na figura apaixonante de seu protagonista, o geógrafo brasileiro nascido na Bahia Milton Santos (1926-2001); um dos pensadores mais agudos do país, Milton tem a seu crédito um livro dentre tantos como A natureza do espaço: técnica e tempo; razão e emoção (1997) e assinou na imprensa nacional alguns dos artigos que melhor iluminam a realidade contemporânea, no Brasil e no mundo, como O país distorcido, A normalidade da crise e Nação ativa, nação passiva.
O documentário de Tendler é uma longa entrevista com o geógrafo filósofo poucos meses antes de sua morte; Tendler adiciona a seu encontro com Milton algumas imagens de confrontos sociais que ajudam a clarear, visualmente, o pensamento de exceção de sua personagem. É claro que o cinema de Tendler está muito longe das ousadias de raciocínio de Milton, mas em alguns luminosos momentos o cineasta logra captar a qualidade de profeta brasileiro no fim do século XX que Milton apresenta a um público embasbacado com esta mistura de simplicidade e complexidade de frases tão inacreditável e finamente elaboradas.
Pensador negro que ousou desmascarar as artimanhas das elites e se valeu duma matéria tão burocratizada pela ignorância como a geografia para estabelecer novas noções de território; homem lúcido que teve de ver sua lucidez reconhecida fora do país para chamar a atenção da pátria (mais uma presa de nosso colonialismo cultural: em Fabricando Tom Zé Décio Mattos Jr. mostra que o músico maldito Tom Zé foi descoberto pelo norte-americano David Byrne para interessar os tupiniquins daqui), Milton alertava num de seus artigos: “A briga entre o chão e o cifrão, da qual está resultando uma sociedade fragmentada e uma Federação ingovernável, não pode ser resolvida como se o dinheiro em estado puro fosse o único pressuposto da vida nacional.” Otimista convicto (e, raridade, otimista e visionário social sem pieguice) como demonstra o sorriso irônico das imagens do filme de Tendler em que aparece, Milton morreu com esperança, e a esperança é seu legado às gerações que vêm.
Mesmo com todo o seu acanhamento diante da grandeza de seu tema, o documentário de Tendler vem estabelecer um contraponto com aquele meio escapista documentário de música que nos encantou a todos, Brasileirinho (2007), do finlandês Mika Kaurismaki. Talvez Tendler e seu árido documentário tenham mais a ver com o país em que vivemos do que a brasilidade construída pelo realizador finlandês.
Por
Eron Fagundes