20 de
dezembro de 2004
Antes
da apresentação dos créditos iniciais, acompanhando
a escuridão da tela, algumas vozes dos bastidores duma
campanha política que podem ser confundidas com cenas
de algum filme antecedendo o programa principal se o espectador
não identificar a voz de Lula ou desavisadamente esquecer
o tema do filme ao qual vai assistir. No começo da película
a voz-over do realizador, João Moreira Salles (para o
espectador que não conhece sua voz, é simplesmente
um narrador-auxiliar da câmara, comum em certos documentários
brasileiros de antigamente mas que nesta realização
praticamente se ausenta depois da intromissão inicial),
informa sobre o processo de filmagem: rodou muita coisa da campanha
política de Lula, mas, ao escolher o material na montagem,
o cineasta privilegiou mais as cenas privadas que as cenas públicas
do futuro presidente: reuniões fechadas, seqüências
em aeroportos e aviões, passagens por hotéis; segundo
Salles, seu filme Entreatos (2004) é um dos dois ou três
que o material bruto poderia gerar. Ou seja, o cinema é uma
questão de montagem.
O
observador habitual se preocupa com entender o homem e o político
Lula nas imagens de Entreatos. Visando a isto, atenta em suas
palavras, em suas brincadeiras, em suas descontrações,
em suas tensões, em suas exacerbações humanas.
Quer saber como o ex-operário do ABC paulista se converteu
num político de projeção internacional.
Mas o filme de Salles, para quem quer observar cinema, não é uma
realização política, não dá definições
de aula: é um exercício de corte e montagem. Neste
aspecto são características duas longas seqüências
em que Lula tergiversa no interior de um avião. Sua habitual
salada de frutas ideológica na verdade pouco importa.
O que interessa é a extensa e intensa passividade da câmara
diante de seu observador, os cortes são poucos, inesperados
e quase não alteram o ângulo, tudo tão sutilmente
feito que a seqüência se assemelha toda ela a um único
plano, o plano-seqüência desabafo.
Outra
cena exemplar do método de trabalho de Salles é aquela
em que Lula está sendo barbeado por seu barbeiro ao mesmo
tempo em que dá uma entrevista (um discurso?) por telefone
celular a uma rádio de Porto Alegre. O embevecimento da
câmara, a naturalidade do entrelaçamento do cotidiano
do indivíduo com a sua vida pública contagiam o
espectador.
Diretor
de Nélson Freire (2003), talvez ainda
falte a João Moreira Salles a centelha de invenção
de Eduardo Coutinho, de quem ele é admirador, como se
vê pelo prefácio que Salles escreveu para o livro
O documentário de Eduardo Coutinho (2004), de
Consuelo Lins. “É surpreendente que essa disciplina
extrema não seja sinônimo de álgebra. O rigor
de Coutinho não é a do engenheiro, mas a do jazzista.” (Salles).
Em Entreatos a câmara de Salles parece mais solta, mais
natural que em Nélson Freire, tornando seu rigor formal
mais desabusado e mais emotivo.
Por Eron Fagundes
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