28 de abril de 2008
Diz-se que o norte-americano Woody Allen é um cineasta intelectual. Diz-se que Allen reverencia, em sua forma cinematográfica e em suas citações de conteúdo, alguns grandes realizadores europeus: o sueco Ingmar Bergman, o italiano Michelangelo Antonioni, o francês Eric Rohmer, o peninsular Federico Fellini. Em suas obras mais recentes (Poucas e boas, 1999; Trapaceiros, 2000) o refinamento intelectual de Allen se mimetiza diante do público hollywoodiano, ou seja, os diálogos e as situações são menos cerebrais e literários que aqueles de alguns de seus trabalhos mais estimados, como Manhattan (1979) e Hannah e suas irmãs (1986). O atual lançamento de O escorpião de jade (The curse of the jade scorpion; 2001) serve para lançar mais lenha na fogueira das reflexões sobre as mutações de Woody Allen ao longo dos anos. Allen muda sem deixar todavia de permanecer fiel a si mesmo e a seu rosário de citações cinematográficas.
O novo Allen reconstitui o clima narrativo dos policiais da série negra que esteve em voga em romances e filmes americanos dos anos 40 e 50. Crimes (no caso, roubo de jóias), aventuras detetivescas, loiras fatais, espíritos femininos complicados. Um dos melhores filmes da atual temporada igualmente evocava as películas desta época: O homem que não estava lá (2001), de Joel Coen. Se Coen optou por um trabalho fotográfico em estudado preto-e-branco, Allen preferiu as cores, o que é curioso, pois Allen inaugurou a rodagem moderna em preto-e-branco com as esplendorosas imagens de sempre citado Manhattan e seria natural que, ao tornar aos anos 40 (na primeira imagem da fita surge um grande letreiro: 1940), fizesse uma fita policial sem cores. Sabe-se lá o que vai na cabeça dum artista: suas intenções são sempre secretas e ao observador resta conjecturar diante do resultado material da obra de arte (no caso do cinema, o que se vê projetado na tela branca).
O escorpião de jade é uma narrativa bem abotoada (o cineasta está em plena forma de seus dotes narrativos) e enche seu universo de ficção com as habituais tiradas cômicas de Allen, a maioria preciosas e que podem funcionar fora do filme mas se costuram admiravelmente dentro dele. A base da história de Allen é que seu protagonista, o detetive W.C. Briggs, interpretado pelo próprio diretor, deve investigar roubos de jóias perpetrados por ele mesmo em transe hipnótico; esse estado de hipnose foi gerado durante um show por um mágico que, a partir de alguns vocábulos-chave, hipnotizou a ele e à mulher que lhe era desafeta na firma de detetives em que trabalhavam; o mágico, para divertimento da platéia, colocou o casal de inimigos numa imaginária lua-de-mel; a partir daí o charlatão da magia passou a dominar as duas personagens, levando primeiramente Briggs a roubar as jóias e depois a criatura feminina magnificamente vivida por Helen Hunt. Allen lida bem com toda esta parafernália de fantasia, extraindo dali um filme de um rigor realista por vezes notável. Pode-se dizer que aqui a beleza do cinema de Allen esteja mais próxima do Fellini dos anos 50, estilo que ele homenageou mais diretamente naquele que talvez seja sua obra-prima mais evidente, A rosa púrpura do Cairo (1985), cuja parecença com As noites de Cabiria (1957), de Fellini, em momento algum lhe retira a exacerbada originalidade.
Talvez seja mesmo assim que se pode amar o cinema de Woody Allen: seu mosaico de referências eruditas européias se dissolvem tanto em O escorpião de jade que podemos admirar um verdadeiro grande cineasta americano -divertido e objetivo como soem ser os artistas made in U.S.A.
Por
Eron Fagundes