11 de outubro de 2006
Quase no final de Espelho mágico (2005), o mais recente filme dirigido pelo ancião português Manoel de Oliveira, uma dama rica, acamada e doente, pergunta a seu marido: “Que faremos com a eternidade?” Ele responde, sem hesitar (dificilmente as personagens de Oliveira hesitam –parecem símbolos, que agem como figuras construídas, abrindo certas origens teatrais e literárias do cineasta): “Tudo, menos o trivial.” O cinema de Manoel de Oliveira pretende ser como o desejo desta sua criatura: fugir do trivial, o que é algo sempre chocante num universo de trivialidades como é o da produção cinematográfica habitual. Oliveira foge da trivialidade pelo rigor de seu pensamento e por uma construção formal absurdamente sem concessões. Como para o francês Robert Bresson, o cinema é para Oliveira muito mais uma escrita (linguagem) do que um espetáculo (divertimento). Embora todos nós saibamos que estes conceitos muitas vezes se mesclam.
Espelho mágico põe em cena com inquietante precisão o ritmo pensado, cerebral a que o realizador se tem entregue ao longo dos anos. Demorados planos-seqüência fixos para acompanhar a falação interminável e adrede artificial das personagens vão produzir uma narrativa lenta, que exige uma reeducação do olhar acostumado com os padrões comerciais de filmar. Este processo de adaptação ao cinema de Oliveira é sempre doloroso; filmando muito como tem feito nos últimos anos (quase como o norte-americano Woody Allen, que roda uma película por ano), Oliveira nunca concede, tem a liberdade de filmar de um pintor, o que perturba aqueles que acham que o cinema não pode desfrutar deste privilégio artístico em função de seus compromissos industriais. A pergunta que o espectador se faz diante das extravagâncias místicas e intelectuais que Oliveira encena com absoluto despudor em Espelho mágico é: quem se interessará por ver as torturas íntimas de um gênio do cinema, quando é mais tranqüilo dirigir-se ao cinema ao lado onde Meryl Streep é o diabo que veste prada? A santa esquisita interpretada por Leonor Silveira na realização lusa adota tons meio complicados de passar pela garganta da maioria dos assistentes que freqüenta cinema. As circunvoluções fílmicas de Oliveira exigem do espectador uma preparação ética-estética-filosófica de que o cinema se afastou muito nestas últimas duas décadas: Oliveira, como o sueco Ingmar Bergman, o italiano Michelangelo Antonioni e o francês Eric Rohmer, está entre os resistentes ao estado de coisas cinematográfico.
Espelho mágico trata com um sentimento ali entre a seriedade e a ironia dum assunto místico: uma mulher rica encuca que quer que Nossa Senhora lhe apareça. Um ex-presidiário (Ricardo Trepa) e um falsário (Luís Miguel Cintra) se aproveitam desta ingenuidade religiosa para tentar engambelar a dama rica, enquanto um professor de História especializado em histórias da Virgem Maria e um padre tecem o acompanhamento teológico da personagem. De certa maneira, esta figura estranha de santa moderna é herdeira da santa louca vivida por Ingrid Bergman em Europa 51 (1952), do italiano Roberto Rossellini, e do demente que crê ser a reencarnação de Jesus Cristo interpretado por Preben Lerdorff em A palavra (1955), do dinamarquês Carl Theodor Dreyer: são personagens que desarrumam os cenários sociais por onde passam.
O tema bíblico já esteve no pólo central de um dos mais belos filmes de Oliveira, O meu caso (1986), onde o caso de Jó iluminava os outros três episódios do filme: Jó é o próprio Oliveira, que tece um cinema de muita paciência e de condução do espectador. As inserções metalingüísticas de O meu caso (aparece a própria equipe de filmagem) transformam Jó num diretor de cinema, Jó é Oliveira em estado metafórico.
Depois de muitos exasperantes e duradouros planos fixos, mais para o fim do filme o virtuosismo estético de Oliveira manipula travellings labirínticos pela mansão e por lugares por onde a santa e seu marido teriam andado quando ela entrou em coma; estes alucinados movimentos de câmara revelam a magia do cinema cerebral de Oliveira, assim como esta magia se caracteriza na hábil utilização de espelhos que parece mergulhar, através destes espelhos, nos reflexos do passado procurados pela mente.
Pode-se dizer que Espelho mágico é menos acessível ao público que Um filme falado (2003), o filme anterior de Oliveira e o melhor filme exibido comercialmente em Porto Alegre em 2005, e propõe um retorno à estética muitas vezes enervante de Inquietude (1998). Contornados por um elenco de intérpretes lusitanos, o francês Michel Piccoli (que trabalhou com Oliveira em Vou para casa, 2001) e o brasileiro Lima Duarte (que fez para o cineasta o padre Antônio Vieira em Palavra e utopia, 2000) são duas preciosas homenagens que o velho gênio do cinema português presta a atores que ele admira.
P.S.: O que me desagrada na exibição de filmes portugueses nos circuitos comerciais são as legendas, principalmente em se tratando de um filme como Espelho mágico, onde a entonação é pausada e audível. Acho que os exibidores exageram na dose ao tratar o público como uma massa de imbecis. Fica difícil para mim imaginar que um imbecil se interesse por ver o cinema reflexivo de Oliveira, que tem derrotado até espectadores bastante inteligentes.
Por
Eron Fagundes