A GUERRA NÃO ACABOU
 

 

15 de fevereiro de 2008

Marcando a volta do realizador Paul Verhoeven à sua Holanda natal depois de um longo aprendizado hollywoodiano, A espiã (Zwartboek; 2006) concilia com grande senso fílmico o sentido do grande espetáculo de ação a uma visão histórico-crítica impiedosa e sem concessões duma quadra fundamental da história humana no século XX, a da II Guerra Mundial e a barbárie que se acobertou debaixo de sua casaca de bombardeios. Verhoeven é intransigente em seu olhar sobre a crueldade dos seres humanos, e em A espiã ele mostra que o nazismo e as injustas perseguições vão para além do domínio germânico de então. Quando a II Guerra acabou, e se pensava que o mundo livre instauraria uma nova ordem de coisas, o comportamento nazista em antigos membros de resistência e um ódio cruel indisfarçadamente racista perpetuam a violência contra a protagonista.

Rachel Steinn, magnificamente vivida por Carice van Houten, é uma judia que viu sua família assassinada por nazistas a bordo duma embarcação numa autêntica emboscada onde os agentes iniciais desta emboscada, vem-se a saber, eram falsos “resistentes” vendidos aos alemães. No fim, após um plano da resistência falhar, de que ela participou ao infiltrar-se no meio alemão graças à atração física exercida sobre um general teutônico, Rachel é confundida com uma traidora que se vendeu ao nazismo. Perseguida por um lado e por outro, Rachel vive maus bocados. A espiã destrincha os mecanismos sinuosos de espionagem e traição entre o nazismo e a resistência, demonstrando que as aparências enganam e que os indivíduos trocavam facilmente de lado para sobreviver naqueles tempos árduos. Às vezes caricatural em certos retratos nazistas, aqui e ali com algumas soluções mais acadêmicas de linguagem, A espiã nunca deixará de emocionar-nos com seu desenho admirável dos oprimidos, especialmente o casal central da trama, a judia que viu os seus serem mortos e seu apaixonado general nazista (Sebastian Koch, o mesmo bom ator que viveu o escritor perseguido do brechtiano A vida dos outros, 2006, do alemão Florian Henckel) depois da guerra fuzilado numa aliança espúria entre o antigo regime nazista e o novo terror imposto pelos outrora resistentes.

Lembrando coisas dolorosas mas que necessariamente devem ser sempre evocadas com indignação (como a brutalidade nazista e sua perseguição aos judeus, mas que são situações anteriores ao nazismo e aos alemães, como se vê na conduta da Inquisição espanhola para com os judeus em Sombras de Goya, 2006, de Milos Forman, e se prolonga para uma guerra que nunca acaba, como se vê na parte pós-guerra do filme de Verhoeven), A espiã é outro belo trabalho de um cinema histórico-político destes tempos de melancólica inconsciência. Como a atriz alemã oriental de A vida dos outros, a cantora judia-holandesa de A espiã é obrigada a conviver intimamente com tipos que lhe dão náusea; tanto uma personagem quanto outra o fazem em nome da causa ou da carreira. Mas no mundo de degenerada amoralidade que estes filmes mostram (de maneira mais distanciada no filme alemão) sobra um poder de consciência instalado em algumas de suas criaturas.

Por Eron Fagundes

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