Estorvo (1991), o romance de Chico Buarque de Holanda, teve em sua época alguns elogios da crítica, mas que me pareceram mais considerações de compadre do que demonstrações de amor à literatura. O subjetivismo árduo da narrativa não levava a lugar algum e revelava-se bastante inferior a outros textos que buscavam caminhos semelhantes, como Um copo de cólera (1985), de Raduan Nassar, ou A voz submersa (1984), de Salim Miguel.
Estorvo (1999), o filme que Ruy Guerra extraiu da obra de Chico, esforça-se na procura da originalidade formal, o que é benfazejo em se tratando do conformismo do cinema brasileiro atual; Ruy substitui as frases sincopadas de Chico por bruscos movimentos de câmara e cortes repentinos dentro duma fotografia alucinantemente onírica e duma música que bate no pesadelo. Mas aonde chega Ruy com tanto "cérebro cinematográfico"? Depois das facilidades formais de Ópera do malandro (1985), igualmente retirado do universo artístico de Chico (uma peça de teatro) e de Kuarup (1988), também de origens literárias (o clássico romance de Antônio Callado), Guerra não logra tornar aos tempos de suas obras-primas do Cinema Novo, como Os cafajestes (1963) e Os fuzis (1964); a possível inventividade estilística do cineasta é estéril, o formalismo é vazio, falta o conteúdo humano nestas brilhantes abstrações. Sem o gênio de Orson Welles em O processo (1962), Ruy perde-se no grotesco de sua criatura e de suas criaturas.
Como em Jean-Luc Godard, às vezes relampejam na tela letreiros que ajudam a construir a história; são textos que saem do livro de Chico, o que reforça a aliança literatura-cinema segundo Guerra. Como já notáramos em Um copo de cólera (1999), acidentado filme que o realizador Aluízio Abranches "fotografou" a partir da obra-prima de Raduan Nassar, nem sempre a guerra entre a palavra e a imagem é bem realizada no cinema brasileiro, um cinema cuja esterilidade está sempre à espreita.
Por
Eron Fagundes