UM GÊNIO QUE AMA O CINEMA
 

 

29 de maio de 2006

O amor do cineasta alemão Wim Wenders se expressa também nas aproximações temáticas que ele faz em seus filmes. Em Estrela solitária (Don’t come knocking; 2005) o que aparece em cena é a figura de um veterano ator de faroestes que um belo dia abandona o set de filmagem, bagunçando com o esquema certinho duma produção típica de Hollywood; a peregrinação deste ator de ficção em busca da cidadezinha onde nasceu e onde viveu seus anos iniciais (e onde ainda mora sua idosa mãe) e depois no encalço de dois supostos filhos (um roqueiro tão temperamental quanto o ator que desapareceu das filmagens e uma garota que escorre sinuosamente pela trama), esta peregrinação vai servir para que Wenders revisite o western, seus cenários, seus símbolos, de maneira mais profunda e criativa (não esqueçamos: Wenders é um gênio do cinema) que aquela do chinês Ang Lee em O segredo de Brokeback Mountain (2005) ou mesmo do belo filme do norte-americano Tommy Lee Jones, Três enterros (2005); fascinado pela raiz americana de filmar, Wenders nunca é submisso: olha de frente os mitos que alimentam seu cinema.

Na verdade, Wenders é um diretor em busca do cinema. Sua aproximação do tema de filmar não é isenta de uma emoção que contém uma nostalgia cerebral. Em seu documentário Nick’s movie (1980) a perversidade estética de Wenders debruçou-se sobre os dias cancerosos de um de seus mestres, o realizador norte-americano Nicholas Ray. Em Tokyo-Ga (1985), outro documentário, a câmara de Wenders percorreu ambientações e pessoas da capital nipônica para topar a alma filmada por outro de seus professores de cinema, o japonês Yasujiro Ozu. Em O fim da violência (1997), uma narrativa ficcional, Wenders utiliza a figura física decrépita de outra sobra do passado do cinema, o diretor norte-americano Samuel Fuller (este mesmo diretor fora visto também em O estado das coisas, 1982): um plano fixo da expressão doentia e desesperada de Fuller, que estava à morte durante as filmagens, é uma das coisas mais contundentes de O fim da violência. Como bom alemão, Wenders sempre hesitou, mesmo em seus trabalhos de ficção, entre o documentário e o que seria uma história inventada. Um de seus filmes menos citados, Caderno de notas sobre roupas e cidades (1989), rompe muito destas fronteiras entre o documental e o ficcional, permitindo uma comparação com outro alemão, Alexander Kluge, especialmente de O poder dos sentimentos (1983): tomar o cinema como um itinerário desgarrado, fragmentar tudo mas manter a força duma imagem constante. De certa maneira, Estrela solitária edita de novo esta magia do cinema de Wenders: colocar o cinema em estilhaços para remontar criando um novo conjunto.

A personagem vivida por Sam Shepard (também roteirista do filme, refazendo com Wenders a dupla de Paris, Texas, 1984) é um dos muitos seres desgarrados que cruzam as narrativas de Wenders, desde o vagabundo cinemaníaco de sua primeira obra-prima, Com o passar do tempo (1976). Falta o solo nos pés das personagens centrais dos filmes de Wenders; apesar dos grandes cenários naturais abertos que convidam a um enraizamento interiorano, as criaturas de Wenders são sem-família que buscam a esposa perdida (Paris, Texas), os filhos esquecidos ou ignorados ou a mãe longínqua no caso de Estrela solitária. Nesta busca dos filhos Wenders não abdica do frenesi melodramático; e o faz com sua aguda sensibilidade européia: não frustra seus admiradores com concessões hollywoodianas.
E Wenders, cineasta e cinéfilo, é generoso com seus espectadores. Senão, como ele foi desencavar do baú de nossa memória atrizes de duas gerações distantes, intérpretes maravilhosas de dois grandes tempos cinematográficos? A “idosa” Eva Marie Saint faz a mãe do astro vivido por Shepard; quem se lembra dela, muito jovem e encantadora, seduzindo James Stewart no trem de Intriga internacional (1959), do inglês Alfred Hitchcock? Eva permanece encantadora. A madurona Jessica Lange, tão extraordinária em tantos filmes e capaz de levantar com sua energia e jeito muito pessoal de interpretar os defuntos de Hollywood, é a mulher com quem a criatura de Shepard teve um filho no passado; amamos Jessica de novo, seu brilho intenso, sua fulguração física na tela. Mas uma das cenas mais turbilhonantemente poéticas de Estrela solitária é aquela em que a suposta filha do ator, uma cara muito branca, leitosa mesmo, num transbordante primeiro plano fixo, dá sua versão mágica da figura do pai que está ali na sua frente: é como se Wenders isolasse este trecho bastante místico do realismo geral do filme, retomando um pouco do espírito de seu filme mais belo e antológico, Asas do desejo (1987).

De uma maneira diversa daquela do francês Jean-Luc Godard, o alemão Wenders erige o cinema como matéria de seus filmes. Onde Godard arma um cáustico jogo de brincar, Wenders expõe em imagens uma partitura nostálgica: Ozu, Ray, Fuller, os mitos do faroeste e a ressurreição de grandes atrizes que hoje em dia eram só memória. Uma memória que a genialidade de Wenders vai tornando viva.

Por Eron Fagundes

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