O BRASIL DAS REMINISCÊNCIAS
 

 

31 de maio de 2007

O cineasta baiano Edgard Navarro é da mesma geração do realizador carioca Silvio Da-Rin. Se Da-Rin refaz na atualidade suas inquietações políticas da juventude em Hércules 56 (2006), Navarro parte para relatos autobiográficos onde a vida da personagem central tem como pano de fundo momentos históricos da vida brasileira em Eu me lembro (2006).

Navarro estréia no longa-metragem quase aos 60 anos, mas há muitos anos fez furor num Festival de Cinema de Gramado com seu média-metragem rodado em 16 mm Superoutro (1989). Como tantos diretores de sua geração, Navarro se formou nos precários meios de produção da chamada bitola nanica, o Super-8 dos anos 60, 70 e 80. Em Superoutro se evidenciavam as sujeiras de linguagem que o cineasta usava de maneira extremamente debochada. Havia neste filme uma cena característica: a câmara rasteja rente com o chão e enquadra umas nádegas e acompanha sem cortes o ato de defecar que o ator-personagem pratica ao vivo diante do olhar do espectador; esta cena poderia lembrar aquela em que o ator alemão Rudigler Vogler caga em Com o passar do tempo (1976), de Wim Wenders, mas o estilo de Wenders é objetivo, documental, enquanto Navarro exagera o ato de defecar, sublinhando o excremento, as nádegas do ator brasileiro Bertrand Duarte, caracterizando o barroquismo da imagem. De uma certa maneira, Superoutro ressuscitava Rogério Sganzerla e Glauber Rocha numa busca de um cinema péssimo e livre, o cinema que o Brasil então merecia. A merda era o signo do Brasil que víamos nos anos 80.

O espectador que evoca Superoutro e vê os primeiros movimentos da projeção de Eu me lembro se surpreende um pouco. Eu me lembro se parece inicialmente com um “relatório já visto” de peripécias da vida de qualquer um: os dilemas familiares da infância, as descobertas da vida e do sexo, os furores iniciais da adolescência. Há uma influência não negada de Amarcord (1973), do italiano Federico Fellini; mas é um paralelo complicado, pois Fellini é um mágico que ergue os lugares-comuns da existência. Depois, a partir da adolescência, da investida nas drogas, dos avanços sexuais, das intromissões religiosas, Eu me lembro adquire dimensões esquizofrênicas mais caracteristicamente fellinianas e se torna um pouco mais interessante com os tipos que povoam a imaginação do protagonista.

Ocorre que Eu me lembro tem sérias deficiências em sua estrutura narrativa. Os elos se dissolvem, se fragmentam demais, mostrando que a evolução de Navarro se perdeu nos anos que vêm desde Superoutro. Não logra fazer um cinema avançado, que pretende. E extravia o pique do controle de um narrar baseado em reminiscências pessoais.

Eu me lembro pode ser visto como curiosidade pelo cinéfilo brasileiro, mas se esboroa em suas dificuldades de impor-se ao espectador como um filme mais autêntico. Lembra às vezes a frouxidão de Cão sem dono (2007), dos paulistas Beto Brant e Renato Ciasca.

Por Eron Fagundes

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