O HOMEM ESTRANHO DA LOUCURA BRASILEIRA
 

 

19 de setembro de 2007

Fabricando Tom Zé (2007), documentário dirigido por Décio Mattos Jr., é, aparentemente, uma cinebiografia de um músico brasileiro ligado ao Tropicalismo dos anos 60 e que não teve a mesma sorte de seus pares, como Caetano Veloso e Gilberto Gil, sendo sepultado em vida num ostracismo doloroso. (Tom Zé apareceu como ator no filme Sábado, 1995, de Ugo Georgetti). Aparentemente uma cinebiografia simplesmente: põe Tom Zé em cena e vai costurando suas origens nordestinas (Irará, Bahia) e seu renascimento musical no exterior (Paris, Viena, Suíça). É sobre a música de Tom Zé e as incompreensões que a cercaram? Em parte sim, mas está longe da objetividade sonora de outro documentário de música, Brasileirinho (2007), do finlandês Mika Kaurismaki. Mas na verdade é muito mais: é um sopro de irreverência estética.

Tom Zé, o músico e o homem, é uma daquelas personagens de documentários que se tornam co-autores dos filmes em que são inicialmente escalados para intérpretes ou objetos temáticos. A inquietação e as perturbações de Tom são a inquietação e as perturbações do próprio filme de Mattos Jr. Tom Zé não é somente o assunto do documentário que se volta para ele, mas ainda é ele o próprio documentário: produz, interpreta, dirige, cria, como músico e (vamos estabelecer uma ficção do que vemos) como cineasta eventual do filme em que está; lá pelas tantas, ao falar das maravilhas dum palco onde se apresentou, sugere ao realizador que sobreponha “estas palavras” (aquelas que ele Tom está dizendo) ao próprio cenário que está descrevendo, inicialmente deslumbrantemente vazio, depois começa a ser preenchido pelo público, depois aquela massa humana aparece como a extensão da barriga do artista (e estas palavras, “como uma extensão de sua barriga”, vão casar-se de fato na montagem do filme com as imagens referidas). Tom Zé é o próprio documentário, mas também é o próprio cinema que se aspira a fazer: liberando as energias criativas a partir daquilo que o artista define como “sua incapacidade de fazer a música de sempre”, faz-se uma arte revolucionária (cinema, música) porque não se sabe fazer outra coisa, porque é o que lhe sobrou na beira da estrada à margem da arte oficial. Pode-se ver uma forte relação entre a existência musical de Tom Zé (um nordestino pobre e feio que ousou sofisticar o cenário dos sons para desespero dos burocratas musicais do Primeiro Mundo) e a do cinema de Glauber Rocha, que, dizem, não sabia fazer cinema e por isso fez o cinema que fez; Tom seguidamente afirma no documentário que não tem dons musicais (desde sua voz) e precisa, ao contrário dos bem-dotados, inventar constantemente para sair alguma coisa.

Fabricando Tom Zé capta, com a excentricidade de sua personagem que se expande para uma excentricidade elétrica de filmar (sem a esterilidade despersonalizante de Conceição —autor bom é autor morto, 2007, criação coletiva da Universidade Federal Fluminense), o delírio brasileiro em seu estado primitivo, a mistura autêntica que somos lá no fundo de nosso sertão de popular e erudito.

Por Eron Fagundes

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