O diretor de cinema sueco Ingmar Bergman deu por encerrada sua filmografia ao rodar Fanny e Alexandre (1982). Dizia que estava velho demais e seu corpo já não suportava os esforços físicos necessários para se fazer um filme. Depois, Bergman andou adicionando à sua obra alguns trabalhos para a televisão, entre eles o recentíssimo e belíssimo O mundo de luz e sombra (1997).
Pois voltemos ao último Bergman para cinema, a que assisti numa sessão vespertina dum sábado de abril de 1984, no extinto Cinema Um, Sala Vogue. Uma alegre e luxuosa festa de Natal toma conta das seqüências iniciais de Fanny Alexandre, filme que rendeu a Bergman um Oscar. Uma refeição familiar, numa mesa cheia de brilhos e objetos refinados, marca o tom da igualmente feliz cena que dá cabo da fita. Entre uma e outra imagem, ao longo de pouco mais de três horas de projeção, o realizador sueco faz desfilarem suas obsessões em torno do relacionamento humano, da frieza nórdica, da morte e deste espaço da mente em que o real e a ficção se confundem; mas se sua narrativa busca muitas vezes a atmosfera trágica, a faceirice deste Bergman derradeiro afasta-se do pessimismo brutal que tem ditado a ideologia de seus trabalhos imediatamente anteriores.
Cenas de um casamento (1974), Face a face (1976) e, principalmente, Sonata de outono (1978) e Da vida de marionetes (1980) tiveram um cenário árido e o mais das vezes abstrato e vazio, numa transposição do estilo televisado para o cinema. Fanny e Alexandre, ao contrário, é dotado duma ambientação rica em sua caracterização de época dum pequeno universo da burguesia sueca do início do século. Em lugar dos constantes primeiros planos que vinham enforcar a linguagem cinematográfica em malhas de rostos e palavras, vemos aqui a mestria de Bergman para compor interiores plasticamente maravilhosos.
Fanny e Alexandre, com sua multidão de personagens, parece retomar o espírito dum Bergman dos anos 50, Sorrisos duma noite de verão (1955). Se naquela obra-prima a então bela e jovem Harriet Anderson vivia uma criada travessa que desencaminhava afetivamente seus patrões, no filme atual ela é novamente uma criada, mas envelhecida e má, que não hesita em entregar o menino Alexandre aos maus tratos do padrasto.
É agradável estabelecer estas comparações, onde a memória navega dum filme para outro. Porque talvez seja o mais compensador acerca de Fanny e Alexandre, uma obra visualmente bonita, com algumas cenas bastante poéticas, mas em seu todo algo vazio, que às vezes atinge os olhos, porém não convence o coração. Em Gritos e sussurros (1972) a utilização dum vermelho sombrio nas paredes e a adequação das vestes (negras) ao clima narrativo chegaram a um ponto soberbo na cena de jantar em que a irmã interpretada por Ingrid Thulin estava à mesa com seu marido; em Fanny e Alexandre todo o esforço de Bergman para atulhar a casa dos Ekdahl de adereços burgueses não tem dramaticidade.
Talvez a questão temática que mais instigue a curiosidade do espectador seja a repressão à infância, assunto desenvolvido com muito mais amplitude e profundidade pelo espanhol Carlos Saura em Cria Cuervos (1976). O bispo, casado em segundas núpcias com a viúva mãe dos garotos Fanny e Alexandre, tem a empostação dos ditadores protestantes; mas, como sugere Bergman a certa altura de sua narrativa, para evitar cair no maniqueísmo, também tem seu lado bom, não passa dum ser interiormente contraditório e incapaz de expressar seu verdadeiro amor às pessoas.
Como ocorria em Sorrisos duma noite de verão, quem sabe a obra pregressa do cineasta com a qual o último Bergman para cinema mais se assemelha, tudo é devidamente resolvido em seu final. O bispo mau morre incendiado num conjunto de circunstâncias fatais que sucedem numa determinada noite; e, assim, a mãe e seus filhos podem viver mais sossegados, ainda que, de quando em quando, os fantasmas do passado, na atmosfera trágica transmitida a todo o filme, ameacem a tranqüilidade familiar.
Mesmo que não logre dar-nos a sensibilidade de outros momentos de Ingmar Bergman, Fanny e Alexandre tem instantes de rara beleza (a decoração de interiores; seqüências de neve, seqüências de chuva; as chamas que consomem a casa do bispo), pois a Bergman ninguém pode disputar a capacidade de filmar.
Por
Eron Fagundes