O DOCUMENTÁRIO DE FANTASIA
eron@dvdmagazine.com.br

7 de julho de 2003

Desde seus primeiros filmes (Mulheres e luzes, 1950; Abismo de um sonho, 1952; Os boas-vidas, 1953) se evidenciava no estilo de filmar do italiano Federico Fellini um pendor para o documentário: fragmentação episódica de crônica de província era o alicerce estilístico de suas obras dos anos 50. Neste aspecto, Fellini foi um atento e original discípulo de outro mestre do cinema peninsular, Roberto Rossellini ; basta lembrar que Fellini foi assistente de direção de Rossellini no clássico neo-realista Roma, cidade aberta (1945). Os anos iniciais de Fellini tiveram a marca deste cinema meio jornalístico: documental. Como suas realizações, a partir dos anos 60, foram desvinculando-se da matéria realista de cinema, mergulhando cada vez mais em signos oníricos, esqueceu-se esta essencial capacidade documentária do cineasta; embora ele se tenha aproximado com mais exatidão do gênero em Os palhaços (1970), que permanecia inédito em Porto Alegre até o ano passado, o observador cinematográfico mais profundo poderia ver em todas as suas fantasias uma forma narrativa tão saltitante quanto num documentário.

A reprise de Roma de Fellini (1972) coloca o cinemaníaco diante dum autêntico documentário de fantasia. Federico Fellini joga sobre a cidade em que viveu desde os dezessete anos até sua morte uma carga intensa de subjetividade. O filme não é propriamente uma ficção cinematográfica comum, pois é um apanhado de cenas e imagens mais ou menos soltas cuja personagem de ligação é uma cidade, num sentido quase abstrato de cidade, Roma. Tecnicamente é um documentário: Fellini vasculha, com sua equipe, a “verdade-mentira” romana; mas enxerta reconstituições de época que, se não retiram a forma documental do filme, tornam problemática a definição do gênero. Como todas as obras de arte que propõem entes novos e híbridos, Roma de Fellini desafia as definições tradicionais. Fellini, um realizador comprometido intelectualmente com a “seriedade crítica de uma obra de cinema”, esculhamba com esta seriedade e age quase como um divertido amador ao colher instantâneos irresponsáveis de vida na cidade que habita; mas em momento algum perde a grandeza e a conseqüência de seu cinema.

Fellini cruza pelas características de Roma como um maestro. Seu filme é um depósito poético da cidade eterna. Cita-se muito o desfile de moda eclesiástico, em que o sarcasmo religioso de Fellini vais mais longe do que nas procissões de A estrada (1954) e As noites de Cabiria (1957) ou do que naquele Cristo dependurado de um helicóptero em A doce vida (1960). Não há esquecer igualmente as seqüências dos dois bordéis: na verdade, Fellini começa com a imagem contemporânea da realização do filme em que jovens se entregam ao amor livre, e compara esta realidade com a turbulenta freqüência aos bordéis dos anos da juventude do realizador, contrapondo o bordel barulhento e chulo a outro mais luxuoso e circunspecto mas que também desanda para uma luxúria vadia. Estas longas e intensas cenas dos bordéis, talvez um pouco longas para o gosto elíptico do espectador de hoje, são fundamentais porque gravam o espírito de toda a narrativa: oscilar entre o passado e o presente romanos. Outras imagens características são as dos restaurantes de rua, a comilança italiana, criaturas típicas atirando-se aos pratos com voracidade. O breve aparecimento de Anna Magnani, a “loba romana” desde Mamma Roma (1962), de Pier Paolo Pasolini, e que teve uma morte clássica em Roma, cidade aberta (1945), de Roberto Rossellini, ela aparece xingando o próprio Fellini, é outro dado curioso para o cinéfilo. Assim como a entrevista com o escritor norte-americano Gore Vidal, dizendo obviedades sentado a uma mesa de restaurante, busca captar outro fato cultural: o americano Vidal vive em Roma há muitos anos e, além de homem de letras, é também um homem das ilusões cinematográficas, pois assinou o roteiro de Bem-Hur (1959), de William Wyler.

Talvez o aspecto em que Roma de Fellini mais desmanche a sisudez da narrativa clássica seja na utilização duma personalíssima metalinguagem, em que o realizador do documentário de fantasia não se oculta: manda o operador levantar a grua, sua mão aparece no canto da tela indicando que um carro siga adiante, ele próprio é visto dentro dum carro que segue a equipe de filmagem. Em E la nave va (1983) Fellini tentou novamente incursionar pela metalinguagem: mas o resultado foi artificioso.

Enfeixando estas observações em série sobre o filme, não se pode esquecer a passeata de motos do fim: é o coroamento da magia de Fellini, que permanece atual como nunca.

Por Eron Fagundes