28 de abril de 2008
O primeiro movimento de As feras (1994), filme realizado pelo paulista Walter Hugo Khouri e lançado com atraso nos cinemas em função de brigas do cineasta com os produtores, é uma tranqüila e lenta panorâmica que descreve um cenário concentrado: uma daquelas "frases cinematográficas" interiorizadas que o diretor adaptou de mestres europeus como o italiano Michelangelo Antonioni e o sueco Ingmar Bergman. A última imagem deste Khouri é o primeiro plano da face tensa e dolorosa de Nuno Leal Maia num escurecimento que fecha o filme e dá início aos créditos finais. Entre a panorâmica de abertura e o desesperado encerramento o que surge na tela é um complexo e difuso jogo psicológico com o sexo e a representação. O resultado é uma obra estranha, diferenciada, que se não está entre os grandes momentos do autor de As deusas (1972), não impede um certo encantamento no espectador mais afeito ao cinema de Khouri.
A dicotomia entre as lembranças eróticas da personagem fixada no lesbianismo de sua prima mais velha e a vida presente da criatura de Nuno Leal Maia é visível, pois Khouri filmara as seqüências de memória em 1980 como um filme à parte e as utilizou como enxerto na realização que começava a rodar dez anos depois. Mas a habilidade do cineasta em seu jogo de rostos, corpos, gestos, objetos de cena, cruzamentos de montagem confere beleza plástica a As feras.
As relações que se estabelecem entre as personagens são projeções umas das outras. O ator que vive Jack, o estripador na peça que está sendo ensaiada conta ao protagonista uma história que, por sua semelhança, leva a personagem a compor seus planos de memória: Khouri cruza-os (os planos) habilmente na montagem. O realizador vale-se com maestria da mistura de verdade e ficção ao provocar a sensação de que os atores da peça transmitem seu ego artístico à realidade vivida, mais ou menos como o fazia o espanhol Carlos Saura em Olhos vendados (1978).
Cheio de simbologia, As feras parece um pouco mais preciso que o filme posterior do cineasta, Paixão perdida (1998), exibido há dois anos na mesma Sala Paulo Fontoura Gastal, na Usina do Gasômetro. Os diálogos de As feras são mais certeiros e aqui Khouri, excelente diretor de atores, acerta melhor no jeito de falar dos intérpretes. Juntando filosofia, pornografia e banalidade, Khouri não deve decepcionar seus admiradores nesta experiência de exótica misoginia.
Por
Eron Fagundes