06
de julho de 2005
O cineasta lusitano Manoel de Oliveira é um artista para
poucos. Em seu novo filme, Um filme falado (2003), ele radicaliza
o cinema do pensamento. Apesar de se tratar duma narrativa que
acompanha um cruzeiro por lugares históricos à beira
do Mediterrâneo, o que indicaria movimento e mutação
de cenários, o plano cinematográfico é sempre
estático e a conversação é elaborada
e exigente como poucas vezes se tem a oportunidade de ouvir no
cinema; certos conceitos fílmicos emanados do jeito de
filmar do diretor são difíceis de especificar a
despeito de sua aparente simplicidade.
No
centro condutor da trama o realizador coloca uma professora de
história muito jovem (a bela atriz portuguesa Leonor
Silveira) e sua pequena filha que estão a bordo dum cruzeiro
pelo Mediterrâneo rumo a Bombaim, onde se encontrarão
com o pai da menina e marido da mulher. A aventura marítima
vai servir para que Rosa Maria, a professora de história,
conheça lugares de que falava muito em suas aulas sem
nunca ter pisado neles, como Istambul, que foi antigamente a
fundamental Constantinopla, tomada pelos turcos na Idade Média;
na verdade a aventura marítima é uma aventura intelectual,
feita com a ingenuidade de coisas antigas e sabidas, e a viagem
pela cultura ocidental se converte logo numa viagem pelo interior
das personagens.
Diz-se
que o cinema de Oliveira é literário, intelectual,
alguns o tacham de aborrecido. Oliveira já declarou seu
amor à literatura e sua vontade de arrancar do cinema
seus compromissos de entretenimento. Este processo não
se dá sem problemas para o espectador cuja massa audiovisual é determinada
por outros rumos. O filme de Oliveira age como uma sala de aula
e seu rigoroso didatismo incomoda a maneira habitual de ver filmes.
O traço mais característico desta ousadia estilística
de Oliveira é seu peculiar jeito de filmar as perguntas
que a menina faz à mãe: o filme endossa a inocência
da garotinha, as falas se desdramatizam rapidamente, causando
um certo choque em nossos ouvidos que dão por falha amadorística
o que se vai transformando pouco a pouco em frescor formal; a
menina é um espelho do próprio comportamento do
espectador, aguçado pela curiosidade que os episódios
vão despertando.
Numa
determinada seqüência a câmara de Oliveira
se desvia das relações da professorinha com sua
filha e se põe a uma mesa onde se reúnem o
comandante da embarcação, um americano vivido por
John Malkovich, uma grega (a maravilhosa Irene Papas, que deslumbra
numa cena em que canta), uma francesa (a bem dirigida Catherine
Deneuve) e uma italiana (a inocente Stefania Sandrelli); a babel
armada por Oliveira (cada personagem fala seu próprio
idioma: inglês, grego, francês e italiano e cada
um compreende o que o outro diz) vai aos poucos desconcertando
o observador. A primeira parte da seqüência é um
longo plano-seqüência fixo de conjunto: todos os falantes
aparecem ao mesmo tempo no quadro. Na segunda parte são
primeiros planos fixos das pessoas que falam, planos que se entrecruzam
saltitantes na montagem. Trata-se duma reflexão sobre
a importância da comunicação pela palavra.
Em Palavra e utopia (2000), uma obra-prima que
parte dos textos do padre Antônio Vieira, Oliveira já discutia
o poder da palavra. Em Um filme falado ele se
deixa hipnotizar pela palavra.
Mas
aqui Oliveira está igualmente inquieto com os secretos
movimentos que, à margem do desenvolvimento de idéias,
vão dinamitando a sociedade contemporânea. Um dos
locais visitados por Rosa Maria são as ruínas de
Pompéia, arcaica cidade destruída pelo vulcão
Vesúvio. O último plano do filme –um plano
explosivo de significados—se congela numa fotografia que
mostra o rosto espantado de Malkovich: é o signo da perplexidade
do cineasta diante dos azares de nossos dias.
Por Eron Fagundes
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