21
de fevereiro de 2006
Vou
começar falando de O fim e o princípio
(2005), o exemplo mais agudo de um documentário
brasileiro de hoje, citando algumas idéias
revolucionárias do ensaio Cineastas
e imagens do povo (1985). Falando do documentário sociológico
que imperava no Brasil na década de 60, o
livro definia em três frases: “A voz
do locutor é diferente. É uma voz única,
enquanto os entrevistados são muitos. Voz
de estúdio, sua prosódia é regular
e homogênea, não há ruídos
ambientes, suas frases obedecem à gramática
e enquadram-se na norma culta. Outra característica:
o emissor dessa voz nunca é visto na imagem.” E
mais adiante: “Diferentemente do entrevistado,
nada lhe é perguntado, fala espontaneamente
e nunca fala de si, mas dos outros.” Parece
que as inquietações do crítico
Jean-Claude Bernardet foram escritas para que o cineasta
Eduardo Coutinho interferisse nestas regras do documentário:
o locutor é a voz do saber que não
pertence ao universo retratado; não se mistura,
pois nunca é visto no quadro, e assim, fora
do joguinho semificcional do documentário,
não é constrangido por pergunta alguma.
Em O fim e o princípio Coutinho interliga
as seqüências por suas obsessivas aparições
como mais uma personagem do universo que ele expõe
diante da câmara; e seguidamente os homens
de interior que ele filma lhe empurram perguntas
que ele não sabe como responder. É bem
verdade que nos filmes anteriores de Coutinho esta
distância entre o mundo e o cinema já estava
bastante apagada; com Cabra marcado para
morrer (1984,
lançado pela mesma época do profético
ensaio de Bernardet, o diretor já estava na
cena narrativa do filme e sua personagem não
era uma criatura tranqüila e sabichona, como
a do locutor clássico, uma das diferenças é que
Coutinho, o diretor, era também o locutor
e ia eliminando a voz do saber da habitual narrativa-over.
Mas é mesmo em O fim e o princípio que a radicalidade do método de filmar de
Coutinho atinge seu apogeu: a incompletude da vida
está inteira neste fim sem princípio
ou neste princípio sem fim. Voltando: Cineastas
e imagens do povo foi escrito para que o cinema brasileiro
um dia produzisse um filme como O fim e o princípio.
O
anedotário jornalístico em torno
de O fim e o princípio, título
meio enigmático e de vários ângulos
semânticos, conta que Coutinho foi ao sertão
da Paraíba sem nenhum assunto nem pesquisa
prévia: o próprio Coutinho, no início
do filme, fala desta busca por um tema ao seguir
no encalço duma locação ou de
pessoas que tenham histórias para contar.
Na verdade, roteiro mesmo nenhum filme de Coutinho
tem: há sempre um esqueleto, uma diretriz,
apontamentos que se abrem para o inesperado na hora
da filmagem. O que torna O fim e o princípio mais perturbador é que este método é radicalizado:
não há apontamentos e o filme se torna
um ziguezague em busca de si mesmo. No tópico “Projetos”,
incluído no fim do livro O documentário
de Eduardo Coutinho (2004), de Consuelo
Lins, o diretor advoga: “Qual a razão
para agora querer fazer um filme em um distrito rural
do Nordeste?
Porque eu quero fazer o contrário da cidade
grande. Cidade grande é Peões, Master,
Babilônia – tudo isso é cidade
grande. Agora eu quero voltar para o campo, mas sem
tema. Uma vida rural que mal tenha televisão.
O meu prazer seria encontrar um núcleo geográfico
e fazer um filme inteiramente neste lugar, sem pesquisa
e com uma equipe mínima, quatro ou cinco pessoas.” Isto
dito seis meses antes de começar a rodar o
filme, surge assombroso diante do filme pronto, pela
exatidão do projeto de um filme em busca de
seu tema: sintoma duma convicção que
as aparentes divagações de Coutinho
indicariam noutro sentido, o sentido do amadorístico
precário; Coutinho trouxe das possibilidades
amadoras do cinema o melhor, a seiva vital, e desprezou
o ranço. Diz ainda: “Não há por
que ter um tema. O que é a vida em uma vila?
E por que no sertão nordestino? Porque lá a
invenção verbal é muito forte.
O lugar no Brasil onde se inventa melhor é no
sertão. Podia ser também no vale do
Jequitinhonha, em Minas Gerais.”
O
fim e o princípio, projetado como um documentário
sem assunto próprio, é um pouco isto:
um vagar, uma conversa mole sobre a vida. Mas igualmente
apresenta seu assunto que talvez estivesse no inconsciente
de seu realizador: todos os entrevistados, com exceção
de Rosa, que funciona mais como uma auxiliar de direção
ao introduzir a equipe de cinema no meio social em
que ela vive e onde está sendo rodado o documentário,
são figuras idosas, algumas bem idosas, os
planos muito próximos daqueles rostos deformados
pelo tempo são uma contemplação
sobre a velhice, que é no fim e no princípio
o objeto mesmo deste filme no princípio sem
assunto; sendo o próprio Coutinho um homem
idoso, já passou dos setenta anos, é natural
que selecione entrevistados velhos. Nos filmes de
Eduardo Coutinho há sempre um forte jogo com
o acaso; em O fim e o princípio o acaso é o
principal gerador da linguagem cinematográfica
e este acaso, paradoxalmente, vai dar uma estranha
unidade à narrativa. Coutinho, no citado “Projetos”,
elabora: “O acaso é fascinante, mas
também não o acaso total, porque senão
não existe filme. O acaso acontece, mas você o
controla, separando o bom acaso do mau, do inútil.”
A
penúltima imagem da fita vai mostrar a família
de Rosa, a auxiliar de direção e personagem
de Coutinho, à mesa de refeições,
tagarelando. O último plano do filme é um
plano geral silencioso da mesa depois que todos se
retiraram: as vozes e as imagens são só lembranças.
Trata-se de um gesto nu do cenário. Aí eu
penso na vontade expressa por Coutinho de usar o
tempo morto, filmar as pessoas fazendo coisas anódinas,
preparando a comida, preparando lenha, sem falar.
Coutinho, que gosta de ouvir a voz do outro, seria
capaz de contemplar o silêncio do outro? O
plano derradeiro de O fim e o princípio demonstra
que, pelo menos, o silêncio dos seres que se
tornaram invisíveis na imagem ele é capaz
de filmar, senão pelos cinco minutos que ele
disse desejar, por alguns significativos e profundos
segundos.
Por
Eron Fagundes