10 de fevereiro de 2008
A civilização americana nasce essencialmente da violência das sociedades que se agrupam para formá-la? Este núcleo circular de violência gera os mecanismos sociais e cinematográficos de O gângster (American gangster; 2007), o mais recente filme americano dirigido pelo inglês Ridley Scott e que vem excitando as paixões dos que cultuam um espetáculo de ação que não se esquece de apontar para uma certa visão crítica do mundo. Desde Os duelistas (1977), sua verdadeira obra-prima e que resiste incorruptível ao passar das décadas, Scott vem perdendo ano a ano seu preciosismo britânico para edulcorar seu estilo de filmar; o melodrama Um bom ano (2006) foi a constrangedora autopasteurização de Ridley, que todavia é sempre mais conseqüente que seu mano, Tony; em O gângster o realizador parece assumir inteiramente uma persona americana, rodando um filme de gênero, mas sua capacidade de filmar em larga escala as ações fílmicas não abastardam —felizmente— sua natureza de cineasta.
O gângster é antes de tudo um espetáculo bom de ver, que desce prazerosamente goela abaixo do espectador. No centro da trama um mafioso negro amoral que fez fama no tráfico de drogas nos anos 70 e um policial branco que é o único agente da lei que não se deixa corromper pelas finanças e pela depravação do universo que deve enfrentar; no dueto interpretativo, Denzel Washington parece mais solto do que nunca, mas a face dura e sem nuanças de Russel Crowe exige da direção de Scott artifícios para não deixar transparecer o artificialismo da oposição entre os intérpretes, o que prejudicaria o confronto ideológico proposto.
As lutas interpretativas e humanas que envolvem as personagens não ocultam alguma ingenuidade como se toda esta parafernália da violência fosse vivida como um brinquedo de crianças. Scott tem em suas cenas de ação uma contenção clássica que já foi desbaratada pelo sarcasmo de um cineasta como Quentin Tarantino. Mas O gângster tem anotações históricas preciosas; se está longe da acuidade de Martin Scorsese em Gangues de Nova York (2002) ao esboçar as origens da sociedade estadunidense na violência, enxerta com muita classe as ligações entre mercado de drogas, a guerra do Vietnã (aparece até a figura emblemática daqueles anos, o presidente Nixon falando pela televisão —ícone visual de então, Nixon na televisão) e as perturbações mais cruéis e miseráveis daquela juventude.
Talvez se possa facilmente desmontar tudo aquilo que possivelmente O gângster tenta dizer-nos. Mas não há como evitar o fascínio que este estilo muito americano que o inglês Scott foi aprendendo exerce sobre o observador. Ainda que em O gângster a contundência de filmar não seja pasteurizada.
P.S.: Sem embargo de todos os abismos humanos e estéticos que separam os dois filmes, não me furto a ver certas semelhanças entre o que faz Scott neste seu filme e aquilo que o greco-francês Constantin Costa-Gavras realizou em seu clássico Z, inclusive na forma como no final os letreiros completam uma história que visualmente terminara de outra forma. Em Z os letreiros revelam que o juiz que mandara prender os militares fora depois destituído e os ditadores voltaram a mandar. Em O gângster os letreiros revelam a posterior associação entre os dois ex-adversários, com o policial transformando-se em advogado de defesa do traficante.
Por
Eron Fagundes