27
de setembro de
2004
Depurando
cada vez mais seu estilo de filmar, o cineasta brasileiro Carlos
Reichenbach volta a brindar o espectador, em Garotas
do ABC (2004),
com uma narrativa cinematográfica em que a montagem busca
uma harmonia que é acima de tudo musical. A maneira como
os cortes, os planos e os movimentos de câmara se sucedem
na tela obedecem ao processo de uma clave: a imagem é quase
transformada numa nota musical; cada trecho do filme aparece
com uma precisão bastante rara no cinema brasileiro. O
que se observa no Reichenbach de hoje (em obras-primas como Alma
corsária, 1993, e Dois córregos, 1999, e neste
seu último lançamento) é uma aliança
entre rigor formal e espontaneidade de filmar em que aquele não
retira a naturalidade das cenas e esta não cai na improvisação
amadorística sem eira nem beira; neste aspecto nosso realizador é tão
considerável autor quanto alguns europeus que se valeram
destes jogos de rigor e desenvoltura para construir suas filmografias
(o espanhol Carlos Saura, o sueco Ingmar Bergman, o francês
Robert Bresson –antes que se apressem os leitores, quero
esclarecer que nenhum deles influiu no cinema de Reichenbach).
Garotas
do ABC é um olhar do cinema intelectual e literário
de Reichenbach para um cenário em que foram rodados importantes
documentários políticos brasileiros, entre eles
o extraordinário Braços cruzados, máquinas
paradas (1978), de Roberto Gervitz e Sérgio Toledo: o
universo operário da industrializada região do
ABC paulista, onde, no fim dos anos 70, começaram a estourar
as primeiras greves de trabalhadores no corpo da agonia da ditadura
militar. Reichenbach, com tato e sensibilidade, se aproxima de
criaturas femininas que trabalham numa indústria têxtil;
os sons e os movimentos dos teares são outros elementos
que compõem a musicalidade do filme.
O
centro da trama deste que foi projetado como o primeiro de seis
olhares para as tecelãs paulistas é Aurélia,
uma negra vivida por Michelle Valle; ainda durante a apresentação
dos créditos iniciais, temos a primeira cena sedutora,
um striptease ao contrário, a personagem está nua
e se veste em seu quarto dançando. Originário da
Boca do Lixo paulistana, um gueto da produção cinematográfica
pornográfica brasileira nos anos 60 e 70 e parte dos 80,
Reichenbach não rejeita a sensualidade dos corpos jovens
em cena ainda hoje, como na seqüência que abre a fita.
A
modernidade de Garotas do ABC é um dado. A irrefreável
violência da sociedade deste início de milênio
surge nas loucuras de um grupo de jovens neonazistas capitaneados
pela personagem de Selton Mello; a este grupo pertence o namorado
de Aurélia, chamado Fábio Tavares e interpretado
com a devida rigidez por Fernando Pavão; do conflito carnal
e humano entre Aurélia e Fábio nascem as contradições
de comportamento que dão pujança a um dos lados
desta narrativa múltipla.
Há seqüências que provocam vertigem no olho
do observador. Selton Mello e Fernando Pavão estão
diante duma pedreira em que operários estão em
seu trabalho de demolição, Selton fala o tempo
todo em sua revolução social fascista, a personagem
de Pavão está é inquieta com o recente rompimento
com a negra que continua a deslumbrá-lo, a câmara
gira constantemente em torno dos dois, provocando a sensação
de vertigem.
Surge
uma curiosa participação de Reichenbach como
ator quase só com sua voz. São duas cenas, ele é o
diretor das operárias. Numa delas ele está de costas,
na outra de frente, mas seu rosto nunca é visto. Sua voz
poderosa, à Orson Welles, preenche o plano.
Enfim,
Garotas do ABC é a obra de um autor, traz a marca
pessoal de Reichenbach em todas as soluções estilísticas.
Poucos filmes brasileiros feitos nos últimos anos podem
ombrear com este novo Reichenbach: Cronicamente inviável
(2000), de Sérgio Bianchi; Tônica dominante (2000),
de Lina Chamie; O príncipe (2002), de Ugo Giorgetti.
Por Eron Fagundes
|