06
de dezembro de
2004
No
início de A grande sedução (La grande séduction;
2003), filme canadense de Jean-François Pouliot, há uma
seqüência formada por um primeiro plano de um casal
madurão na cama que começa a excitar-se sexualmente
e por outro plano, subseqüente, este um plano geral do vilarejo
em que vemos o casario iluminado à noite mas onde o que
aparece na faixa sonora é mais importante do que a imagem:
respirações e interjeições ofegantes
que simulam diversos atos sexuais (como se fosse um ato sexual
coletivo) por aquelas casas (os mesmos planos voltam no fim do
filme, inclusive com a fumacinha que sai das “chaminés” das
casas). O espectador que vai a cinema há anos não
deixa de identificar a origem desta cena: os irmãos Paolo
e Vittorio Taviani construíram esta seqüência
de dois planos (exatamente assim) em Pai patrão (1977),
uma das obras-primas do cinema da década de 70.
O
protagonista da realização de Pouliot é um
jovem médico que chega a uma miserável aldeia constituindo-se
numa esperança de desenvolvimento para o empobrecido e
ignorante povo local. Ele aporta ali como um homem bem-sucedido,
que tem uma namorada que o ama na cidade e também um amigo
fiel; com os dois ele mantém conversações
telefônicas que os aldeões ouvem tendo grampeado
seu telefone. Na verdade, os aldeões fazem tudo para conquistar
sua simpatia e mantê-lo ali: além de invadir sua
privacidade telefônica, fingem adotar os gostos citadinos
hipocritamente. Lá pelas tantas tudo desaba para a jovem
personagem: sua namorada o trai com seu melhor amigo há três
anos e ele vem a saber dos golpes dados pelo povo do lugarejo
para engambelá-lo. Aí lhe ocorre perguntar: por
que ninguém lhe diz a verdade, pois vive num meio de falsidade,
por que até seu grande amor e seu melhor amigo eram falsos?
A
mim ocorre perguntar, como espectador ranzinza com um filme que
busca a simpatia: por que o retrato de aldeia da narrativa
de Pouliot me parece adotar um tom falso, edulcorado, não
propriamente hollywoodiano, pois as características cerebrais
canadenses estão presentes, mas certamente algo enganador,
que quer valer-se da ingenuidade habitual do observador de cinema?
por que a imitação dos Taviani (há imitação
em alguns aspectos, como no retrato de interior, mas em outros,
uma estudada comicidade moderninha, foge esforçadamente
da imitação), pergunto por que esta imitação
ainda que relativa é tão pasteurizada?
Mesmo
que um jovem espectador de hoje desconheça a rudeza
realista de Pai patrão, percebe-se na atmosfera de A
grande sedução ares de falsidade. Isto está um
pouco na cor da fotografia, outro tanto no jeito dos intérpretes
(mesmo que se esforcem pela naturalidade), algum tanto na superficialidade
de todos os seus apressados questionamentos. Diante do carisma
da personagem central, e de seu dilema em face da falsidade humana,
estive tentado a ter o filme por um entretenimento para considerar;
mas a reflexão de que hoje com muita facilidade nos submetemos
a estas tentações, e em honra do passado do cinema,
creio que devo resistir e jogar o filme em seu obscuro lugarzinho:
logo a memória se descartará dele.
Por Eron Fagundes
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