Quando, no filme Harry Potter e a pedra filosofal (2001), de Chris Columbus, o espectador observa os meninos diante daquele retrato de mulher gorda que de repente fala para eles e, a uma expressão-chave, lhes abre o labirinto, o sentido de aventura e fantasia hollywoodianas está presente. Costumam dizer que o cinema é a mais realista das artes em face da reprodução física e de movimentos que contém; talvez seja equívoco: a fantasia da imagem parece mais fantasia do que aquela permitida pelas palavras, especialmente quando a palavra é tratada com linearidade.
Vamos ao livro da escocesa Joanne Kathleen Rowling. Em Harry Potter e a pedra filosofal (1997) a cena do retrato da mulher gorda aparece assim:
"No finzinho do corredor havia um retrato de mulher muito gorda vestida de rosa.
--Senha? -pediu ela.
--Cabeça de dragão -disse Percy, e o retrato se inclinou para a frente revelando um buraco redondo na parede. Todos passaram pelo buraco. Neville precisou de um calço. E se viram no salão comunal da Grifinória, um aposento redondo cheio de poltronas fofas."
O despojamento direto do texto da autora britânica domina os aspectos góticos da história e dá um certo cunho realista a uma história fantasiosa. Columbus, o diretor do filme, assume um dizer do escritor argentino Julio Cortázar, citado por Jerônimo Teixeira numa publicação crítica de Noite na taverna (1853), novela do brasileiro Álvares de Azevedo: "Todo menino é gótico." Columbus é relativamente fiel aos episódios da narrativa literária e é suficientemente direto em sua linguagem cinematográfica para não complicar a vida dos admiradores de Harry Potter. J.K. Rowling é igualmente direta em suas frases, não evita os clichês verbais ("Os vivas da Grifinória quase levantaram o teto encantado; as estrelas, lá no alto pareceram estremecer."), mas produz uma agilidade de narrar bem mais interessante que a mesmice do filme.
Livro e filme põem o observador crítico diante daquilo que hoje em dia se considera imaginação em arte. Muita gente (e aí se incluem pessoas treinadas para pensar sobre a criação artística) vêem em livros ou filmes como estes do menino-bruxo um exemplo de criatividade. Fica difícil imaginar que o amontoado de lugares-comuns (lingüísticos ou fáticos) possa ter o nome de imaginação e não de escapismo; a escritora leva vantagem sobre o cineasta porque sua literatura tem mais frescor, mas está longe da imaginação de, por exemplo, As viagens de Gulliver (1726), o romance clássico do irlandês Jonathan Swift.
O filme é um entretenimento dispensável artisticamente, mas mantém viva a indústria do cinema nas bilheterias. O livro tem lá sua inteligência sem dispensar o gosto pelas caixas registradoras (literatura majoritária de qualidade); mas não é mesmo que diz o preconceito que livro é para o cérebro e filme para os sentidos primários? Todavia aqui e ali o texto de J.K. Rowling parece escrito com um olho na tela de cinema. Coisas de uma literatura de um tempo cinematográfico.
Por
Eron Fagundes