A DUPLA VIDA DE UM NORDESTINO-PAULISTA
 

 

10 de outubro de 2007

É impressionante como um filme tão desglamurizado quanto O homem que virou suco (1981), de João Batista de Andrade, adquire a serena feição de um clássico do cinema brasileiro, compreendendo —hoje mais do que há vinte e seis anos— certas parcelas constrangedoras da realidade nacional, como a situação sem identidade do homem de regiões pobríssimas do país que migrava para o rico Sul, no caso São Paulo, a mais característica metrópole da nação. No começo da década de 80, quando a fotografia descolorida de Aloysio Raulino e os planos desconjuntados e simplórios inventados pelo realizador do filme batiam nas telas brasileiras, se tinha a impressão de que a serena construção narrativa de O homem que virou suco podia padecer de uma certa ingenuidade e faltava-lhe a autêntica violência visual do cinema operário que pudesse fazer estremecer o regime. Era assim que eu via o filme em seus “aspectos sujos e pobres” de um cinema miserabilista-terceiromundista. Talvez a narrativa ainda seja ingênua, como o poeta paraibano Deraldo, um dos “duplos” protagonistas da história de Batista de Andrade; certamente os quadros e a montagem (esta, atribuída a Alain Resnot, que depois virou cineasta: Lua cheia, Desmundo) buscam adrede um desleixo que convida o olhar do espectador a um relaxamento para com a imagem. É verdade, porém, que estes dados que podiam pôr um ponto de interrogação sobre o filme em 1981, agora se voltam a favor da obra de Batista de Andrade: só uma personagem incauta como Deraldo e só uma tal forma liberada de formas poderia converter-se na visão definitiva do tema de que se acerca.

O homem que virou suco trata com a simplicidade brasileira da questão do duplo. No início do filme José Severino, migrante nordestino, está numa festa em que vai ser condecorado como operário-padrão; pois este operário-padrão esfaqueia o patrão que lhe entregará o troféu e foge. Depois a história se desvia para a personagem de Deraldo, outro migrante nordestino, mas poeta de feira e cordel; Deraldo e José Severino são sósias, a trama vai centrar-se então na perseguição que a polícia e a sociedade fazem a Deraldo julgando que ele é José Severino. O homem que virou suco utiliza com simplicidade e eficiência a imagem do ator José Dumont para caracterizar um duplo que é na verdade só fruto duma confusão visual. Estamos longe dos mistérios metafísicos de Krysztof Kielowski em A dupla vida de Verônica (1991), onde e Verônica francesa e a Verônica polonesa têm sensações espirituais que estranhamente se identificam. Deraldo é da Paraíba, José Severino é do Ceará, ambos são nordestinos, têm formas diferentes de lidar com a sociedade, mas suas semelhanças são mais diretas, objetivas do que aquelas que um diretor polonês pode pôr na tela: Deraldo, pressionado por certas situações injustas, vai às vezes cair numa ira que remete ao gesto de Severino no início do filme; quando Deraldo come uma comida ruim e estragada, joga a bandeira no chão e vocifera; quando a prostituta com quem Deraldo se relaciona é tentada à força por um outro amante rejeitado, Deraldo igualmente ameaça aproximar-se do gesto de Severino que iniciou o filme. Mas se sabe, claramente, que Deraldo, o verdadeiro protagonista, é vítima de uma confusão de aparências; o diretor lida com a clareza da interpretação de José Dumont com este estado de coisas confuso, mas que não se passa ao filme, claro, transparente.

No final de O homem que virou suco, quando finalmente Deraldo dá com Severino, descobre neste seu duplo um demente cuja demência se originou do gesto assassino que abriu o filme: um sereno José Dumont (Deraldo) vê melancólico um José Dumont descontrolado (Severino) repetindo contra uma parede de pedras o ato de esfaquear um patrão mítico, invisível. Ao longo dos anos, José Dumont acabou sendo a personagem nordestina por excelência do cinema brasileiro. Talvez o filme de Batista de Andrade tenha contribuído com sua força para isto. Mas antes deste trabalho, em Tudo bem (1998), de Arnaldo Jabor, Dumont viveu um tal de Piauí, operário nordestino que trabalhava nas reformas do apartamento do burguês do filme de Jabor e em determinado momento se mudou com toda a sua família “para a obra” porque fora despejado. Alçado à condição de astro depois de sua interpretação como o empresário malandro de Dois filhos de Francisco (2005), de Breno Silveira, foi considerado o pulmão do cinema brasileiro por um dos cantores retratados no filme; sei não, como diria Deraldo, mas o ator me parece mais o rosto do cinema brasileiro, sua intensidade, sua verdade. O homem que virou suco plasma este rosto.

Com a já aludida simplicidade brasileira, Batista de Andrade estabelece um retrato —a partir do Brasil, a partir de São Paulo— da despersonalização do indivíduo contemporâneo: foi triturado pela sociedade, virou suco, foi bebido e depois que é só bagaço, jogam-no no lixo. O cineasta faz também uma ponte entre o operário e o artista, o intelectual; busca uma difícil identidade entre ambos. Alguns anos depois, em 1985, o ensaísta brasileiro Jean-Claude Bernardet escrevia Cineastas e imagens do povo, onde, a partir da análise de alguns curtas-metragem documentais, referia esta problemática associação entre o cineasta (o artista, o intelectual) e o povo. Na cena em que o olhar de Deraldo repousa sobre a figura esquisita e enlouquecida de Severino, no final de O homem que virou suco, o que temos é a visão do cinema desta problemática associação. É como se o filme de Batista de Andrade fosse dirigido por Deraldo, que na impossibilidade de fazer um filme sobre seu pretenso sósia, o operário Severino, fala de si mesmo. Ou: como demonstrou Bernardet em Brasil em tempo de cinema (1967) o cinema brasileiro, mesmo aquele rodado no sertão por Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos, é um cinema da classe média. O homem que virou suco tem muito dos mitos sertanejos de Glauber, mas age diferentemente no interior da imagem; de qualquer maneira, o sertão nordestino vai invadir as favelas e as ruelas paulistanas no filme de Batista de Andrade.

O homem que virou suco, certamente o mais emblemático de seu autor, conflitua as duas vertentes da forma cinematográfica com que ele se expressa: a documental e a de corte policial. A imagem se despoja dos artifícios do cinema, é plenamente anti-hollywoodiana; mas há um conflito policial em cena, conflito que não vem para descaracterizar o despojamento. No filme seguinte do cineasta, A próxima vítima (1982), o processo de fusão dos dois tópicos começou a descaracterizar-se. Nas obras mais recentes de Batista de Andrade (O cego que gritava luz, 1996; O tronco, 1999; Rua seis, sem número, 2002) certos aspectos da fragilidade narrativa põem o cinema do realizador num caminho bastante anacrônico, quase amorfo. Algo que em O homem que virou suco é driblado de maneira olímpica, um destes chutes na lua que dão certo uma vez na vida. Enfeixando, resta lembrar a curiosidade das participações do diretor inglês Joseph Losey como o empresário multinacional, do cantor sertanejo Dominguinhos e do cineasta brasileiro Denoy de Oliveira como o mestre-de-obras.

Por Eron Fagundes

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