O CINEMA COMERCIAL
 

 

Todo cinema é comercial. Qualquer filme realizado pressupõe a existência de um público para este filme e a necessidade de que este público compre ingresso, nem que seja uma taxa de manutenção das salas, ou é o caso em que estas taxas são substituídas pela bonomia de algumas entidades de filantropia artística. Em princípio, todo cinema é comercial. Pode ser só comercial ou tentar unir o desejo de ganhar algum dinheiro à busca de uma forma de arte. Qualquer afirmação de que pode existir um filme não comercial (que não inclua a existência do dinheiro em sua tramitação) é cretinice; todo o mundo que faz um filme (inclusive os iranianos) o joga no mercado. Isto é comércio: existe em qualquer arte, os Van Gogh valem milhões de dólares, um Picasso é disputado a peso de ouro, mas o dinheiro não os impede de ser o supra-sumo da criação artística humana. É verdade que a arte pode correr paralelamente a este comércio, ou simplesmente ser ignorada pelos diretores de cinema que não são artistas, mas artesãos. Aí começa outra conversa.

Mas refletir sobre cinema não é uma coisa muito simples, ou não tão simples quanto os estereótipos veiculados pelos superficiais chegam a insinuar. Escrever sobre cinema exige um pensamento mais complexo do que aquela passividade de estar numa sala escura e deixar que as imagens dominadoras fluam em nosso cérebro: escrever sobre cinema pode ser mais complicado do que ver cinema, ou ao menos -ver este cinema majoritário, industrial, simplificador. Se queremos do cinema só uma diversão inconseqüente, é perda de tempo escrever sobre filmes ou ler comentários sobre filmes, ainda mais quando não conhecemos o bê-a-bá da linguagem escrita e jogamos a esmo citações que pecam pelo artificialismo; diante da tela de cinema alguns podem querer a diversão mais simplória, é um direito, a maioria age assim, democraticamente eu respeito; diante da tela de computador, ao fazer referências a um filme, estamos estabelecendo um juízo crítico e não se tem o direito de abdicar de conhecimento e reflexão e chafurdar nas frases mais tolas e estereotipadas que dividem o cinema em dois blocos: o cinema comercial e o cinema de arte.

O cinema é uma coisa um pouco mais complexa (mesmo que aparentemente em alguns casos não pareça) do que sonha a vã trivialidade de alguns "homens-aranha". Por exemplo: o realizador inglês Adrian Lyne, em atividade no cinema americano, estando bastante longe de ser um bom cineasta, torna desfiguradas estas diferenças entre um diretor comercial e um diretor de arte. Seus filmes têm um estilo próprio (o que caracterizaria um autor), mas a ambigüidade de suas colocações e a pasteurização de uma maneira de filmar haurida em autores mais empenhados o empurram para o gosto das massas. Um autor no cinema comercial? Desde o começo de Infidelidade (Unfaithful; 2002), a característica esfumaçada e brilhosa do visual do filme indica a maneira de expressar-se de Lyne; ademais, ele se entrega a algumas ousadias, como uma certa lentidão detalhista a que o público habitual se vai acostumando com o andar das horas e a utilização de alguns planos de memória como aquele (juntado com a elipse da cena anterior) em que a mulher, na condução para casa logo depois de dar início a seu adultério, rememora as imagens do sexo com seu amante.

Lyne filma à sua maneira, ninguém filma à maneira de Lyne. Já Steven Spielberg é mais artesanal, muitos poderiam assinar seus filmes, talvez não com todo o seu talento narrativo, mas aí estamos em outra conversa. Mas Lyne é um falso original; todos os seus filmes são pasteurizações do denso erotismo de O último tango em Paris (1972), do italiano Bernardo Bertolucci. Mesmo aqui, em Infidelidade, quando Lyne vai buscar motivo para filmar em A mulher infiel (1969), um dos mais belos filmes do francês Claude Chabrol, ele se entrega de corpo e alma ao método de enquadrar uma cena ou movimentos de câmara ou arregimentar corpos como está no clássico de Bertolucci. Enfim, Lyne conhece o bom cinema (Bertolucci, Chabrol) e o adapta ao gosto de seu público.

Uma das curiosidades de Infidelidade, para o cinemaníaco que tem presente dentro de si a visão do filme de Chabrol desfrutada há vinte anos, é que, mesmo mantendo uma certa "fidelidade" aos episódios daquele clássico, a realização de Lyne chega a colocações diferentes. Se Chabrol era descarnado e distanciado em suas observações sobre a entediada vida familiar burguesa, Lyne parte decididamente para o moralismo, ao carregar na consciência culpada da mulher infiel. Hollywoodianamente, Adrian Lyne coloca seu brilho formal de superfície a serviço do bem-estar da família americana. Não era isto o que acontecia também em Atração fatal (1987), um dos filmes mais badalados de Lyne?

Por Eron Fagundes

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