SCORSESE, UM INFILTRADO
 

 

28 de novembro de 2006

Martin Scorsese é um dos nomes básicos do atual cinema americano. Discute-se, questionando, a ambigüidade de sua visão da sociedade americana a partir do retrato marginal das ruas; mas ninguém põe em dúvida a extraordinária capacidade cinematográfica do cineasta, que aprendeu todos os mecanismos da linguagem fílmica com suas agudas observações de devorador de películas, verdadeiro rato de cinemaneca que Scorsese foi desde a juventude. Mesmo em sua fase atual, bastante longe de seu brilho mais característico, uma fase atual que inclui realizações de passagem como Vivendo no limite (1999) e O aviador (2004), Scorsese dá a volta por cima e mostra sua habilidade para montar suas agressivas e fragmentadas histórias. Os infiltrados (The departed; 2006) é o mais novo exercício estilístico de Scorsese, num ambiente de gângster que parece ser o favorito do cineasta e de que todavia ele se afastou em dois de seus melhores trabalhos, A época da inocência (1993) e Kundun (1997).

O roteiro de Os infiltrados está cheio de pistas e reviravoltas, como convém a uma narrativa de gângster; mas se Scorsese conta com competência  sua história, salvando do ridículo certas situações mais desajeitadas, a verdade é que lhe faltou o toque de filmar o gangsterismo dos irmãos Coen que rodaram uma obra-prima com os mesmos elementos em Ajuste final (1990); o coeficiente de estranheza, reviravoltas e violência dos Coen é tão insinuado quanto em Scorsese, mas aí é que Scorsese não fez jus a seu passado cinematográfico, onde desponta uma das mais sombrias produções americanas dos anos 70, Motorista de táxi (1976), tão ambíguo quanto fascinante em suas curvas de cinema.
Os infiltrados está muito longe de ser um filme que se possa levar de lembrança pelos anos fora, embora seja difícil descartar assim qualquer filme de um cineasta tão bom quanto Scorsese. Sempre no futuro se poderá reavaliar este descrédito que, penso eu, é algo muito pessoal do anotador destas linhas. Hoje, neste momento da filmografia de Scorsese correspondendo ao momento de minha vida de espectador, Os infiltrados parece ser somente a manutenção de Scorsese na mídia das produções de Hollywood; é a seqüência da carreira de um cineasta importante num filme nem tanto. Tratando de um policial infiltrado entre os gângsters e de um gângster infiltrado entre os homens da lei, Os infiltrados revela que Scorsese é um autor infiltrado entre os artesãos comerciais do cinema: ora parece uma coisa, ora parece outra, e é as duas coisas ao mesmo tempo; infiltra-se entre os espectadores que preferem uma ou outra coisa e embaralha a visão dos que gostam das duas coisas.

Não se pode negar: Scorsese tem o senso do cinema para transformar em belos artifícios de linguagem as interpretações patéticas de Jack Nicholson (histriônico e canastrão como nunca) e Leonardo DiCaprio (uma estrelinha típica da meca do cinema, intérprete limitado certamente). Matt Damon é a face mais controlada e elaborada do elenco; mesmo assim, o contágio às vezes o atinge. Entre mortos e feridos, o diretor Scorsese demonstra que, como realizador, está até acima dos maus passos cinematográficos que dá.

Por Eron Fagundes

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