A INGLESA “REAL”
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15 de setembro de 2003

Poucas vezes o cinema dialogadíssimo e despojado do francês Eric Rohmer se voltou para os dramas de época. Lembro-me de A marquesa d’O (1976) e Perceval, o gaulês (1978). Agora, com a exibição de A inglesa e o duque (L’anglaise et lê duc; 2001), o espectador de hoje pode dar com a caligrafia muito particular de Rohmer para reconstituir o passado; deve-se saudar igualmente que é uma das realizações do cineasta que pena por menos tempo para chegar à visão do público brasileiro (dois anos de atraso para os filmes de Rohmer chegarem por aqui é algo alvissareiro).

Rohmer é inegável herdeiro de Robert Bresson com sua afeição pelo cotidiano e pela espiritualidade; o rigor da linguagem cinematográfica e a utilização plena de atores desglamurizados permitem, como em Bresson, uma narrativa austera e desdramática. Adiante de Bresson, Rohmer abunda em diálogos cuja elaboração francamente literária lhe rendeu devotos e desafetos ao longo dos anos. Como Bresson, Rohmer procurou, à sua maneira, eliminar do cinema toda tecnologia modernosa para deixar na tela a raiz, uma volta aos tempos do cinematógrafo. Em A inglesa e o duque estes aspectos primeiros e despojados do cinema se concentram nos cenários em que os atores se movimentam: imobilidade de telões pintados serve de certo modo a caracterizar a aristocracia francesa retratada. Além disto, a iluminação à luz de velas ou de lareiras, com outonais tons amarelados na fotografia, vai acentuar as características propositadamente arcaicas do cinema de Rohmer. O excesso de conversação, a composição dos planos como se fossem telas meio primitivas, a luminosidade meio desmaiada são o choque pré-cinematográfico de A inglesa e o duque, cuja beleza formal resulta da junção harmoniosa imposta pela direção de Rohmer a todos estes elementos. Mas aí surge algo estranho e contrastante no seio deste arcaísmo todo. Rohmer rodou seu filme em vídeo digital, o que confere à visão de A inglesa e o duque uma granulação fotográfica; ao contrário do que se poderia pensar, esta granulação digital não retira o despojamento e a simplicidade de sempre do cinema de Rohmer. Penso se Bresson, que morreu em dezembro de 1999 com mais de noventa anos mas não filmava (por problemas de saúde) desde 1983 quando realizou O dinheiro, se valeria das conquistas da era digital. Rohmer, adepto da base do cinematógrafo como Bresson, não recusou o recurso da câmara digital, embora este feito não chegue a adulterar a aparência de singeleza de sua forma de filmar. Que interesses levaram Rohmer a adequar-se ao recurso digital? Facilidades de realização? Motivos estéticos? A verdade é que Rohmer usa este método disseminado neste século XXI não como os megalômanos de Hollywood, mas sim para obter aquela mesma leveza narrativa que as câmaras de 16 mm sempre lhe deram em seus filmes. Outro cineasta extremamente natural em suas buscas cinematográficas, o iraniano Abbas Kiarostami, assombrou os críticos em seu último trabalho, Ten (2002), ainda inédito por aqui, ao filmar em digital. Como escreveu o crítico gaúcho Luiz Carlos Merten em seu ensaio Cinema, entre a realidade e o artifício (2003), realizadores assim, como Rohmer e Kiarostami, se valem de alguns quase impalpáveis artifícios para produzirem uma impressão de realidade.

Sabe-se que a principal queixa dos analistas contra A inglesa e o duque é a possível insinuação contra-revolucionária do cineasta Rohmer. É verdade que os cadernos de Grace Elliott, uma obscura escocesa cuja principal arma histórica é seu envolvimento com o contraditório duque de Orleans (um revolucionário do primeiro momento depois decapitado pela revolução), não poderiam ser diferentes: perseguida pelo terror, ela só via o terror na revolução. Observado por seus olhos, o povo francês mais pobre era uma massa de indigestos. Mas a queixa pretensamente progressista contra Rohmer é desculpa de quem não está aparelhado para amar seu cinema apurado e agudo na reflexão sobre as relações humanas, mais especificamente as sentimentais, vertidas em diálogos de um cerebralismo brilhante. Como em todos os filmes de Rohmer, o narrador não está dentro da narrativa, nem joga o público ali: tudo é muito seco e muito distanciado e a visão de Rohmer, sutilmente armada, não toma partido. Como em todos os filmes de Rohmer, mesmo quando se trata dum drama de época, o que está na frente temática são as relações amorosas convertidas em palavras e imagens de extraordinária força e profundidade. O caso de amor (que no presente da narrativa é um caso passado) entre o duque de Orleans e a inglesa partidária da realeza é o que interessa a Rohmer estudar para ver até que ponto as intransigências entre os seres humanos podem cavar abismos sentimentais irrecuperáveis.

É verdade que Rohmer tomou por pano de fundo um assunto perigoso como a Revolução Francesa, cuja influência no mundo contemporâneo é demasiado complexa para caber em qualquer filme; mesmo obras prestigiadas, como Danton, o processo da revolução (1982), do polonês Andrzej Wajda, ou Casanova e a revolução (1982), do italiano Ettore Scola, não se abalançam a tanto: Wajda se concentra na personalidade deslumbrante de Danton e Scola vaga com brilho pelo espírito de criaturas importantes que vagavam pelo mundo sofisticado da Revolução Francesa. É igualmente verdade que Rohmer partiu do ponto de vista menos simpático ao miserabilismo popular em que alguns ainda querem inserir o que sobrou das ideologias, e a personagem da escocesa está mergulhada na mediocridade de seu mundinho. Mas para aquele espectador acostumado à visão da filmografia de Rohmer, é fácil saber que em A inglesa e o duque a Revolução Francesa é só um dos elementos de estética cinematográfica de que Rohmer se vale. Esta última frase pode parecer excessivamente formalista, mas em Rohmer o formalismo é natural e conteudístico: afinam-se fundo e forma.

A questão é: ou o observador gosta do cinema dialogado e contido de Rohmer, seu ritmo lento, sua estaticidade do plano (alguns bastante demorados para acompanhar os diálogos vertiginosos); ou então o execra por considerá-lo como um escritor disfarçado de cineasta. É em Eric Rohmer que a literatura e o cinema se dão as mãos: mais do que em Alain Resnais e Marcel Carné, muito citados pelos historiadores como exemplos de um cinema literário.

 

Por Eron Fagundes