23 de agosto de 2006
Intervalo clandestino (2006) começa questionando sua própria existência. Neste documentário de Erik Rocha (ele é filho do mitológico cineasta baiano Glauber Rocha e antes rodara o documentário Rocha que voa, 2002, uma colagem tão turbilhonante quanto um filme de Glauber: em Erik a herança genética não é só biológica mas também estética) o primeiro contato do espectador é com um longo plano escuro em que a voz de um entrevistado questiona o entrevistador sobre o filme que está sendo feito, se vai passar na televisão, respondido que só será exibido nos cinemas o anônimo diz que aí não interessa, ninguém vai ver o filme, o entrevistador pergunta se diante disto deveria desistir de fazer o filme; este é o ponto inicial de uma obra como Intervalo clandestino: porque fazer um filme no Brasil, porque fazer um documentário que gira em torno de criaturas anônimas e desglamurizadas, porque gastar uma energia estética tão grande quanto a de Erik (este jovem realizador é minucioso em suas elaborações formais, que cruzam por algumas invenções de som e imagem do francês Alain Resnais e no geral se assemelham mais ao udigrudi brasileiro dos anos 60 do que ao Cinema Novo) num projeto que, já se canta quase sem melancolia como fato consumado, ninguém vai ver mesmo.
Mas Erik não deixou de fazer seu filme, não deixaria nunca porque sua comichão artística sabe que haveria alguém interessado neste cinema de intervalo que ele propõe. Alguém (um entre alguns) como o indivíduo que escreve estas linhas e se intriga com a realização desde a textura daquele longo plano escuro do início. Neste plano já vemos o embrião de choque de Intervalo clandestino: utilizando uma forte realidade social (o homem do povo, aquele mesmo que o poeta Paulo Martins de Terra em transe, 1967, abafa a fala desregulada para dizer que o povo é um analfabeto, um despolitizado), criando muitas vezes uma aparência naturalista e sociológica, o que vai acontecendo na montagem de Intervalo clandestino é o contrário do naturalismo e dos compromissos sociais, que, bem ou mal, existem e codificam os documentários de Eduardo Coutinho (O fim e o princípio, 2005) e Tetê Moraes (O sol, caminhando contra o vento, 2005); Coutinho e Tetê desarticulam os processos rançosos do naturalismo usando um novo naturalismo que explora a riqueza da realidade; Erik é formalista, tudo se converte em forma, o conteúdo vira forma, a realidade é objeto de culto do cineasta como montador: uma experiência resnaisiana sobre uma colagem naturalista é uma seqüência em que planos dos lábios de diversas pessoas falando (na verdade são muitas vezes planos de rostos, mas a acumulação dos planos acaba por tornar mais importante no plano a região dos lábios) são acompanhados na faixa sonora por uma voz única para todos estes planos, um discurso só que refere uma qualquer coisa social se cola à junção destes planos, os movimentos labiais dão a nítida impressão de que a pessoa na imagem está falando o que aparece no som, mas no plano seguinte a continuidade do som vai ser incrustada em outra imagem, em outra fala, a descontinuidade imagem-som rebenta com a rudeza inicial dum documentário que provocativamente encara o observador propondo um olhar natural das coisas. É o absurdo desta relação entre uma aparência de documentário naturalista e suas irônicas intenções metalingüísticas que dá ao filme de Erik seu sabor próprio.
Intervalo clandestino é o filme do Brasil de Lula, foi filmado durante as eleições de 2002. Mas está longe das propostas de Peões (2004), de Eduardo Coutinho, ou Entreatos (2004), de João Moreira Salles. Seu interesse é ser uma força de contrastes, um caminho subterrâneo; Erik como diretor ou entrevistador não se peja de acompanhar o discurso irregular e por vezes infantil dos entrevistados, se em Coutinho esta irregularidade do popular parece mais harmoniosa, as filmagens também espontâneas de Erik são em bruto, como um copião que será resolvido na montagem mas sem cortes. O corte final será a saída do espectador da sala de cinema para o Brasil de Lula.
Por
Eron Fagundes