10
de novembro de 2003
Em
Meu tio da América (1980), um dos grandes filmes do francês
Alain Resnais recentemente revisto, o realizador insere na montagem
excertos de filmes antiquíssimos para caracterizar com
o comportamento de alguns atores da velha guarda certos tiques
físicos que inspiravam as personagens de sua narrativa.
Num determinado momento de As invasões bárbaras (Les invasions barbares; 2003), de Denys Arcand, a personagem
de Remy, hospitalizado com doença terminal, evoca suas
lembranças de antigas estrelas de cinema e Arcand repete
o procedimento de Resnais: equiparar os gestos das estrelas nos
velhos filmes às ações das personagens que
ele está criando, incluindo com habilidade na montagem
pedaços de películas de antanho. É bom começar
assim a falar da exuberante realização de Arcand,
associando-a à obra-prima inaugural da década de
80 do século passado, porque As invasões bárbaras repõe em cartaz um tipo de grandeza cinematográfica
de que a superficialidade contemporânea se tem afastado.
A
irreverência cinematográfica e filosófica
do realizador canadense Denys Arcand é bem conhecida do
público brasileiro em três filmes que discutiam
a falência das relações humanas no fim do
século XX: O declínio do império americano (1986) dava uma perspectiva histórica ao vazio intelectual
dos anos 80, assim como Jesus de Montreal (1989) se acercava
da impossibilidade religiosa no mundo materialista de hoje e
Amor e restos humanos (1993) investia sobre a crise dos sentimentos.
Conquanto se revelasse um arguto analista da sociedade de seu
tempo, havia sempre alguma coisa nas narrativas do cineasta Arcand
que impunha uma barreira, caracterizando sua visão de
mundo aqui e ali como superficial e transitória.
Esta
barreira despenca em As invasões bárbaras,
talvez o melhor trabalho de Arcand e seguramente um marco na
história do cinema. Tido como um prolongamento das inquietações
de O declínio do império americano, o novo Arcand
deposita seu olhar irônico sobre algumas contradições
do indivíduo e da sociedade contemporâneos. Dotando
suas personagens duma definição emocional raras
vezes vista num filme, Arcand acompanha a comovente trajetória
de um filho que se entrega denodadamente a oferecer a seu velho
pai, no leito final, o melhor conforto para amenizar os sofrimentos
no cabo da vida. Aí, na caracterização do
pai e do filho, Arcand é maravilhoso em pescar os aspectos
contraditórios das condutas humanas. O pai, um socialista
hedonista, que amou acima de tudo a si mesmo amando várias
mulheres, foi um egoísta tão pouco socializante,
contrastando com as intenções de sua geração
de mudar o mundo para o benefício do maior número
de pessoas. O filho, um capitalista, um criador do mercado austero
e impessoal, com seu exterior de jovem protestante, um “jansenista
da era do dinheiro”, oferece silenciosamente um amor inusitadamente
religioso a seu pai. Perguntado pela enfermeira religiosa se
ele, pai, visitava seu pai nos hospitais quando este estava doente,
o velho homem alegou distâncias, esquecendo-se (observação
impiedosa da enfermeira católica) que seu filho estava
ali vindo de mais longe; esta seta jogada na contradição
dum indivíduo aprofunda sarcasticamente em cada minuto
do filme o fosso surgido entre uma ideologia bem-intencionada
e a prática dos sentimentos pelos seres humanos. Cheio
de instantes de emoção, As invasões bárbaras está no seu pico quando o pai abraça seu filho
desejando-lhe que tenha um filho tão bom quanto ele, filho.
Os vídeos da filha viajante do moribundo, mostrados num
laptop do filho, ela uma garota plena de amor à vida,
revela uma criatura tão hedonista quanto seu pai; mas é emocionante
vê-la dizer que o primeiro homem na vida de uma garota é seu
próprio pai e afirmar, corroída pela distância,
que vai sentir a falta dele por toda a vida.
Se
O declínio do império americano fazia uma breve
referência ao nascente problema da AIDS, As invasões
bárbaras alude passageira mas marcantemente aos atentados
terroristas de setembro de 2001: a chegada dos bárbaros à metrópole,
truculentamente como não poderia deixar de ser. Mas a
referência histórica já não é tão
brejeira e superficial como em O declínio. No apogeu de
seu estilo de filmar, Arcand atinge pontos que o equiparam ao
francês Eric Rohmer na capacidade de dar profundidade ao
trivial. E pode-se evocar o suíço Alain Tanner,
para lembrar que As invasões bárbaras pode ser
tão bom quanto Jonas que terá vinte e cinco anos
no ano 2000 (1976) no apanhado apocalíptico de um tempo
histórico.
Por Eron Fagundes
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