13
de outubro de 2003
Antes
de mais nada, convém informar que Irreversível (Irreversible; 2002), filme francês de Gaspar Noé, é uma
narrativa cinematográfica tão formalista que se
torna problemático convertê-la em palavras. A apresentação
dos créditos iniciais já é uma provocação
experimental, algo inusitado nos cinemas normais e que me evocou
os créditos do distante filme brasileiro Brás Cubas (1985), de Júlio Bressane: as palavras têm suas
letras justapostas de trás para frente, como num espelho,
produzindo uma incômoda dificuldade de assimilação
no público; há ali um certo gratuito formal. Depois,
o roteiro alinhava as situações invertendo o tempo
narrativo, o que aconteceu por último aparece antes na
tela: começa pelo desejo de vingança dos homens
(o atual e o ex) da mulher estuprada, a cena do estupro, a festa,
a vida boa anterior a tudo até chegar à gravidez
dela, tudo em ordem cronológica inversa. A primeira parte
da realização é construída inteiramente
de planos-seqüência móveis, em que a obscuridade
da fotografia e a trêfega mobilidade da câmara tornam
personagens e cenários em abstrações quase
invisíveis (havia muito disto, e de maneira mais radical,
nos filmes do russo Sergei Paradjanov). Aí surge a longa
cena (filmada sem cortes, um intenso e extenso plano-seqüência)
em que a personagem da bela atriz italiana Monica Belluci é estuprada
dentro de um túnel por um gigolô que acaba de enfurecer-se
com a pessoa que ele explora: o longo plano é fixo (abdica
da mobilidade dos planos anteriores), a crueldade do plano com
o olhar passivo e irreversível do espectador é extraordinária;
a impressão de veracidade vem desta visão fixa
da câmara, a vulgaridade e a gratuidade dos gestos das
personagens, uma duradoura cena em que o cineasta, exacerbando
nos detalhes, exercita as possibilidades sadomasoquistas do cinema;
auxiliada pelas palavras antiburguesas do cafetão e pela
sodomia violentamente praticada, a imagem deste trecho leva mais
adiante aquela seqüência de O último tango
em Paris (1972), de Bernardo Bertolucci, em que Marlon Brando
sodomizava Maria Schneider gritando impropérios contra
a família e sua educação moral. O estupro
de Irreversível é inesquecível porque seu
método de filmagem não é nada amável
com o espectador; o crítico Tuio Becker, num de seus comentários
da juventude em Santa Cruz do Sul, incluído no livro Sublime
obsessão (2003), observava com muita graça que
na cena do beijo em Um corpo que cai (1958), de Alfred Hitchcock,
o assistente sentia-se beijado; com maldade, pode-se afirmar
que na cena do estupro do filme francês aqui analisado
toda a platéia é incomodamente estuprada.
A
partir do estupro os planos-seqüência, sem abdicar
de alguns movimentos de câmara tão arfantes quanto
os do início, se tornam mais fixos; por exemplo, a cena
da mulher com os dois homens dentro do trem do metrô, discutindo
trivialmente questões sexuais, a afeição
do cinema francês pelo cotidiano é ali exacerbada.
Só no fim da narrativa é que os vertiginosos movimentos
circulares do início tornam: só que agora no lugar
dos espaços interiores, um plano aberto exterior num gramado;
e em vez da fotografia excessivamente escura, uma luminosidade
que ajuda a entontecer o espectador.
Se
não fossem suas peças de escândalo, Irreversível dificilmente poderia aspirar a ser exibido nos cinemas comerciais
por aqui: é dificilmente tragável pelo público
comum. É verdade que o realizador é incapaz muitas
vezes de tornar belo e profundo seu experimentalismo com a linguagem:
seu formalismo às vezes se esboroa, especialmente na primeira
parte da narrativa, antes da cena do estupro, que é o
que ilumina a humanidade (ainda que baixa) do filme. Algumas
cenas extremamente fortes em sua criatividade como cinema (a
do estupro, a da conversa entre os três no trem do metrô,
os círculos concêntricos finais) revigoram a estética
de narrar de Irreversível, obra de arte em que a amabilidade
com o observador passa à margem.
Contemplação sobre a gratuidade do homem contemporâneo
(há uma corrente mimética entre a gratuidade analisada
pelo filme e a própria gratuidade do filme como exposição),
Irreversível corresponde a uma forma cinematográfica
que tem atravessado as imagens de alguns inconformistas franceses
de hoje, como os cineastas Bruno Dumont e Mathieu Kassovitz:
radiografar com um incômodo senso do gratuito nossa inapelável
gratuidade como seres vazios neste princípio de milênio.
Por Eron Fagundes
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