Ao voltar sua análise cinematográfica para a questão da visão (os entrevistados são pessoas que apresentam em diferenciados graus deficiência visual), os realizadores brasileiros João Jardim e Walter Carvalho transformaram seu documentário Janela da alma (2002) numa reflexão sobre a ontologia do cinema. Se o cinema é imagem, deveremos perguntar-nos que imagem é cinema; se somos bombardeados hoje por tantas imagens vazias, devemos questionar se o cinema pode selecioná-las de maneira que nos ofereça um sentido crítico da imagem -ou, como quer Hollywood, isto não é possível, mergulhamos em tantas imagens para chegarmos à cegueira, à ausência de visão crítica, luminosidade embaçada.
Jardim e Carvalho realizam um rigoroso e brilhante documentário de entrevistas. Não à maneira do cinema de conversa de Eduardo Coutinho, pois as pessoas em cena são bem outras. Se o povo ocupa os espaços de Coutinho, são pensadores (cineastas, cientistas, poetas, fotógrafos) quem preenche os quadros do filme analisado neste comentário. Isto gera uma diferença de estrutura: em Coutinho a linguagem visual é mais solta, embora também rigorosa em sua essência; no filme de Jardim e Carvalho há uma construção dramática mais compactada, livre e criativa é certo mas não tão espontânea em sua aparência como em Coutinho. A diferença é sutil aqui no papel, pois conceitos como rigor e aparência e essência são de difícil execução na prática cinematográfica, mas torna-se evidente quando vemos, lado a lado, Santo forte (1999), de Coutinho, e este Janela da alma.
Apesar de sua estrutura narrativa fechada, Janela da alma tem um lado capaz de comunicar-se bem até com o espectador menos informado com as coisas do cinema. Aquela seqüência do vereador mineiro cego e seus filhos é de fácil percepção pela platéia em geral. Já outras, como as intervenções de Agnes Warda contando como filmou amorosamente seu marido Jacques Demy vestindo um suéter num documentário pouco antes dele morrer (a forma como ela, diretora de cinema muito hábil, desviou o foco da imagem duma estrela então em seu esplendor, Catherine Deneuve na força de seus vinte e quatro anos, para o que mais lhe interessava afetivamente como documentarista, a vaidade de seu amado vestindo o suéter), só podem ser apreciadas em toda a sua extensão por quem acompanhou as carreiras de Warda e Demy, dois dos maiores realizadores franceses dos anos 60. Igualmente a aparição da atriz Hanna Schygulla, bastante envelhecida, diz mais aos que a viram bela em filmes alemães dos anos 70 e 80, especialmente sob a batuta de seu falecido marido, o cineasta Rainer Werner Fassbinder. É curioso observar as coincidências entre os depoimentos de Wim Wenders, cineasta alemão, (o excesso de imagens não é bom), e José Saramago, escritor português, (estamos na caverna de Platão e chegamos à cegueira por termos à disposição imagens demais; Saramago é autor do maravilhoso romance Ensaio sobre a cegueira, 1995).
Em suma, um documentário da linha de frente do cinema brasileiro.
Por
Eron Fagundes