A BELEZA ETÉREA DE UM FILME

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06 de junho de 2005

O realizador brasileiro Roberto Gervitz acerta o ponto em seu filme Jogo subterrâneo (2005), rodado dezoito anos depois de seu único trabalho lançado comercialmente, Feliz ano velho (1987), que nascia duma narrativa literária de Marcelo Rubens Paiva. Antes de sua estréia no cinema comercial, Gervitz realizou, em 16 mm, juntamente com Sérgio Toledo, um dos mais extraordinários documentários políticos do cinema brasileiro, Braços cruzados, máquinas paradas (1978), que tratava das nascentes greves do ABC paulista no fim da década de 70 e mostrava um explosivo Lula (o atual morno presidente da República) à frente das “rebeliões” operárias.

Jogo subterrâneo não tem as apelações comerciais de Feliz ano velho, algo conformista e pasteurizado, pois o atual Gervitz submerge num mundo abstrato, aqui e ali obscuro e de consistência temática fluida. Mas, é claro, em momento algum recupera o passado político da primeira vez que o cineasta deparou com a câmara: filmar o momento social brasileiro do cabo dos anos de chumbo. Gervitz partiu de um conto do ficcionista argentino Julio Cortazar, Manuscrito achado num bolso, trocou o metrô de Paris pelo de São Paulo (cidade brasileira tão cosmopolita quanto a capital francesa) e expôs na tela uma realidade cinematográfica que, se no começo causa um estranhamento que parece inconsistente e pretensioso, logo vai adquirindo a força de uma beleza visual etérea que cativa o observador em cada movimento.

A fotografia e a câmara de Lauro Escorel são prodigiosas em captar as sensações fílmicas que o roteiro de Gervitz e de Jorge Duran se esforça por apresentar na tela. O jogo de programação e de acaso que a personagem de Felipe Camargo (um ator de escassos recursos interpretativos para o papel) vai espalhando ao longo da projeção se transforma num espetáculo de fascínio hipnótico; o cenário do metrô (bastante claustrofóbico) é uma personagem-auxiliar da angustiada criatura de Felipe, que por ali vaga tentando ajustar os ponteiros desarrumados de sua vida. Em A dama do lotação (1975), de Neville d’Almeida, havia igualmente a marcante utilização dum veículo de transporte urbano como elemento narrativo fundamental: Sônia Braga passava o filme todo andando de ônibus por um Rio deslumbrante a provocar lascivamente os homens.

Se Felipe é mesmo um desastrado intérprete (falta-lhe a interioridade da personagem), pode-se dizer que o tipo cinematográfico de Maria Luísa Mendonça como a mulher que desorganiza o roteiro da caderneta do homem do metrô é admirável. Igualmente as presenças de Daniela Escobar como a mãe duma garotinha autista e de Julia Lemmertz como a cega que ouve a história do perseguidor subterrâneo são provocativas e sutis.

Jogo subterrâneo é certamente um dos destaques do cinema brasileiro este ano. Apesar de um formalismo conduzido que o aproximaria de Casa de areia (2005), de Andrucha Waddington, na verdade a realização de Gervitz tem aspectos estéticos que, apesar de sua aparente forma pura, vibram mais que as belas imagens do filme de Waddington. Assim, aspectos humanos e artísticos se equilibram bem em Jogo subterrâneo.

Por Eron Fagundes