13
de setembro de
2004
Você pode
observar as mazelas da sociedade brasileira a partir dum evento
criminal que ocorre dentro dum ônibus, como em Ônibus
174 (2002), documentário de reconstituição
de José Padilha. Ou deixar fluir certas realidades desta
mesma sociedade espiando a vida de alguns indivíduos de
um condomínio, pela mão sensível do documentarista
Eduardo Coutinho em Edifício Master (2002). Finalmente,
o microcosmo social pode ser um tribunal e um presídio: é o
que faz Maria Augusta Ramos com extrema habilidade no documentário
Justiça (2004).
Se
Padilha analisa a falta de perspectivas de um deserdado social
e Coutinho tece os caminhos de cotidianos e sonhos duma determinada
classe média, Maria Augusta traça um sutil conflito
de classes capaz de revelar, a partir da exposição
de seus cenários (um tribunal, uma penitenciária,
uma favela, uma confortável habitação do
segmento mais favorecido da população, um belo
carro, as ruas amedrontadoras à noite), os dilemas das
injustiças brasileiras. Tanto Padilha quanto Coutinho
e agora Maria Augusta são muito objetivos em sua maneira
de filmar, abdicando da intervenção socializante
do narrador (voz-off ou inquietações de câmara)
para metaforizar a realidade em cena. A cineasta de Justiça usa quase exclusivamente de planos fixos, a câmara está sempre
imóvel e, mais que isto, busca uma estaticidade que a
leva a uma translucidez e a um mimetismo com o real verdadeiramente
estarrecedores. É surpreendente a naturalidade com que
o documentário se aproxima de suas criaturas; todo o mundo
em cena (juízes, promotores, defensores públicos,
réus) age como se não houvesse diante de si uma
câmara de cinema, a impressão de verdade é muito
forte, o que acaba encantando é sabermos que as coisas
estão sendo filmadas, metamorfoseadas quase numa ficção,
mas a realidade que inspirou a filmagem está também
ali, quase intacta.
Os
significados do filme surgem espontaneamente, sem preocupações
científicas ou teorizantes. O espectador vê o cenário
de casebre (a mulher negra grávida, a filhinha pequena)
de um apenado, e se enternece com a singeleza daquele plano imóvel
numa modesta cozinha. Mas adiante o aconchegante cenário
da casa de um juiz lhe mostra que a humanidade dos seres é a
mesma vista no casebre: uma família à mesa da habitação
do magistrado não difere, do ponto de vista humano, daquela
relação mãe-filhinha-feto na minúscula
cena diante dum fogão. Ligando tudo, Maria Augusta não
faz uma crítica convencional dos desníveis de classe
no país; o que parece interessar à realizadora é ver,
sem preconceitos de olhar, o que acontece no Brasil a partir
de dois de seus espelhos mais característicos e pouco
investigados: o tribunal e o presídio.
Por Eron Fagundes
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