08
de dezembro de 2003
Amos
Gitai é o mais conhecido cineasta israelense. Adepto de
um rigor documental de filmar, que atingiu uma inusitada profundidade
em Kadosch – laços sagrados (1998) e se abeirou
duma perigosa objetividade em O dia do perdão (2000),
Gitai compõe um clima de estranheza formal na concepção
de Kedma (2002), um dos mais belos filmes que aportaram na cidade
este ano.
Ainda
obsessionado por planos-seqüência tão
longos e desprovidos de ação quando minuciosamente
elaborados, Gitai transforma Kedma numa narrativa inovadora,
absolutamente despida de concessões ao gosto fácil
do público. São planos exasperantes, que abdicam
do corte como elemento da linguagem cinematográfica, algo
oposto àquilo que fazia o russo Serguei Eisenstein; deleitando-se
na rotina de grupos judaicos que em 1948 fugiram para Israel
de campos de concentração nazistas, os planos iniciais
do filme são documentais, mas há algo em sua elaboração
vagarosa que produz uma atmosfera fílmica peculiar e os
afasta da obtusa visão cinematográfica de O
dia do perdão.
Mesmo
em suas cenas de batalha, que poderiam aproximar Kedma de uma
obra de ação, os corpos em movimento, a
câmara trêfega rastejando junto aos pés dos
soldados como em Nascido para matar (1987), de Stanley Kubrick:
mesmo aí o rigor da lentidão de Kedma se instala;
tiros, movimentos e sangue são coreografados por um lento
cérebro visual pensante.
Reflexão sobre os conflitos entre árabes e judeus
na Palestina, e também sobre a característica de
apátrida dos judeus, no irrequieto e movimentado plano-seqüência
que fecha o filme, Gitai mostra o desespero dum judeu que deblatera
contra a ausência de história do judaísmo:
os soldados se movimentam o tempo inteiro dentro do plano, a
câmara igualmente anda de cá para lá e de
lá para cá, o protagonista da cena não pára
de falar exasperantemente, há uma coreografia interna
e externa de um plano-seqüência cheio de uma mobilidade
que todo o filme e especialmente o fixo plano geral que encerra
este plano-seqüência e a própria narrativa
renegam.
Os
cadáveres anônimos da criação do
Estado de Israel ressuscitam nesta realização que,
numa época em que até realizadores de despojamento
clássico como o iraniano Abbas Kiarostami e o francês
Eric Rohmer recorrem à câmara digital, permanece
quase nos limites do velho cinematógrafo.
Por Eron Fagundes
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