09
de outubro de
2004
A selvageria
cinematográfica do realizador norte-americano Quentin
Tarantino tem incomodado um certo humanismo retrógrado
que rejeita os aspectos mais crus da realidade estética
deste início de milênio. Profundamente formalista
nas perversões de sua imaginação, Tarantino
abusa ainda mais da boçalidade do mundo em Kill
Bill Vol. 2 (2004); a criatividade de formas do primeiro filme se dissolve
neste segundo segmento carregando sensivelmente na vulgaridade
das personagens.
Apaixonado
por quadrinhos (seu antípoda Alain Resnais,
um intelectual francês que foge ao tom direto americano
de Tarantino), o cineasta ianque coloca na boca de seu protagonista
Bill, vivido com sedutora canastrice por David Carradine, uma
obsessão teórica pelo universo destas revistinhas,
considerando que Clark Kent (a segunda personalidade do Super-Homem) é como
o herói nos vê a todos, o restante da humanidade,
uns fracos. Devorador do lixo de Kung Fu, Tarantino ressuscitou
o ex-astro da série televisiva dos anos 70, Carradine.
A trivialidade da luta de guerreiros entre Elle e a Noiva só é salva
de seu desastre abeirante graças à notável
mão cinematográfica do diretor.
Com
uma lentidão provocativa para um espetáculo
que traz em seu coração elementos comerciais, Kill
Bill vol. 2 é uma saturação asfixiante de
cenas violentas: o olho que a Noiva extirpa de Elle na luta assombra, é pasoliniano
(embora seja muito mais gratuito e sem os laivos políticos
do italiano Píer Paolo Pasolini). Mas a grande asfixia é a
seqüência em que a Noiva é enterrada viva;
durante alguns instantes a imagem se ausenta, a tela é escuridão,
só o que faz o cinema são os sons de gemido e terra.
Talvez esta cena resuma um pouco dos signos claustrofóbicos
da realização de Tarantino.
Ocorre
ainda que a crueldade do artista vai mais longe. A filhinha de
Bill e da Noiva mata um peixinho, pisoteando-o depois de tirá-lo
do aquário para o tapete da sala. Bill, porta-voz de Tarantino,
associa o gesto da menina ao gesto dele, Bill, de tentar matar
a Noiva: às vezes fazemos mal a quem amamos e depois nos
arrependemos. São as desavenças humanas: a maldade
dos adultos já está na mente infantil.
De
fato, de fato mesmo, vencidos os preconceitos duma visão
literária e fora de moda do cinema, Kill Bill
vol. 1 e vol. 2 formam um único filme que se apresenta como um
dos eventos do cinema de hoje.
Por Eron Fagundes
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