UM RIGOR DE FORMAS COMO JÁ NÃO SE VÊ

A primeira cena de La Celestina (1969), filme espanhol dirigido por César Ardavin extraído dum romance de Fernando de Rojas, tem um bucolismo e uma candura extraordinários. A jovem filmada tem um véu branco em torno da cabeça, veste um azul fraco combinado com um rosa desmaiado, solta de sua mão uma pomba branca, toda a elaboração de cenário obedece a estas cores frágeis, amanteigadas; o encadeamento de um plano próximo com um plano geral é cheio de sugestão e ritmo. Os primeiros nove minutos de projeção abolem a palavra da boca das personagens; acompanhamos a procissão de Corpus Christi e a aproximação entre um nobre e uma bela mulher vendo só gestos, das pessoas, de ambientação, da câmara. Um rigor de composição como já não se vê: do início ao fim do filme tudo é medido; o cineasta sopesa cada ação estilística.

Estamos diante, é claro, dum cinema teatral. Os cenários refeitos de Toledo estão longe de ser naturais: os objetos atulham-se concentrando a ação. Mas o teatro cinematográfico de Ardavin é exuberante: sutil e arrebatador depois que o espectador passa a captar seu especial andamento narrativo. A Toledo artificial de Ardavin não é a Toledo penumbrosa de Luis Buñuel em Tristana, uma paixão mórbida (1970); a Toledo recriada em La Celestina obedece "naturalmente" aos conceitos da fantasia romântica do século XIX.

Um dos pontos fortes deste clássico espanhol nasce da precisa marcação do elenco. O par romântico vivido por Julian Mateos e Elisa Ramirez está notável, mas é Amélia de la Torre, a bruxa, a "puta velha"como definiu há tempos uma amiga minha, quem rouba as cenas em que aparece. A seqüência amorosa no quarto vermelho, a trágica morte do herói, o elíptico suicídio de Malibea, o cortejo dos dois corpos defuntos dos amantes dando-se as mãos na morte: tudo é milimetrado neste filme capaz de atingir a sensibilidade do espectador não embrutecido pela vulgaridade contemporânea.

Por Eron Duarte Fagundes