Talvez nunca antes
o cinema brasileiro tenha encontrado uma tão bela e precisa associação entre
palavra e imagem quanto em Lavoura Arcaica (2001), a estréia cinematográfica
do diretor Luiz Fernando Carvalho, responsável anteriormente por alguns trabalhos
na televisão, que, é claro, por evidentes compromissos comerciais, não lhe permitiam
exibir toda a criatividade e o rigor agora atingidos. Trata-se da segunda incursão
de um filme brasileiro no universo verbal muito particular do escritor paulista
Raduan Nassar: Um copo de cólera, novela de 1978, teve sua versão em
película em 1999 por Aluízio Abranches; a peleja entre a palavra e a imagem
dá-se de maneira precária no trabalho de Abranches em função de alguns motivos
básicos: a direção de atores parece desleixada, ao contrário das marcações extraordinárias
de Carvalho; a utilização do texto de Nassar (sempre exultante) não vai além
duma ilustração incômoda, enquanto em Caravlho a beleza e a pessoalidade da
imagem se casam com a poesia do verbo descarrilante de Nassar.
O livro é de 1975 e em sua
época recebeu aplausos de gente como Alceu Amoroso Lima e Octavio de Faria.
O jorro de palavras de Lavoura arcaica não é tão profundamente organizado
quanto aquele de Um copo de cólera, mas as frases individualmente consideradas
são muito bonitas. E é nesta beleza de imagens verbais, com sua sintaxe e sua
adjetivação, que Carvalho mergulha para, à maneira dos grandes cineastas de
todos os tempos, extrair do seio familiar a análise dos problemas psicológicos
e sociais mais graves; como contraponto ao texto forte dito especialmente por
Selton Mello, em atuação deslumbrante, Carvalho faz criações visuais muito próprias,
reinvenção da linguagem do cinema, a lentidão dos planos, as características
escuras da cena em que os olhos mais sentem do que vêem, o toque devagar do
momento do corte, os enforcados primeiros planos dos atores em êxtase, a câmara
subjetiva que substitui o olhar-da-mãe-pela-janela-na-cadeira-de-balanço (a
imagem age como se a câmara estivesse sentada na cadeira de balanço, no lugar
ou no colo da velha). Quase todo o filme é em interiores, em sombras, narrado
em planos muito próximos; mas há algumas significativas aberturas para cenas
luminosas, planos abertos, o exterior da paisagem e da dança.
Mantendo um admirável equilíbrio
nas interpretações, atingindo um ponto de fala poucas vezes obtido pelo cinema
brasileiro (um cinema que muitas vezes não sabe falar, como já observava o historiador
Paulo Emílio Salles Gomes em tempos anteriores ao Cinema Novo), o filme de Luiz
Fernando Carvalho mexe com rigor e desabusada irreverência no tema do incesto,
assunto já tratado por realizadores de prestígio como o francês Louis Malle
e o italiano Luchino Visconti; ocorre que Carvalho faz uma obra tão nossa, tão
pessoalmente nossa, que mesmo aqueles parentescos formais com o sueco Ingmar
Bergman (os gritos e sussurros em planos sombrios e próximos) são metamorfoseados
numa estética profundamente brasileira, não imitativa de nenhuma cultura estrangeira.
(O cinema francês é um manancial
de associações entre a imagem e a palavra, do despojamento de Eric Rohmer ao
barroquismo de Alain Resnais. Luiz Fernando Carvalho inventou uma nova forma
desta associação que, curiosamente, não evoca filme francês algum).
Por Eron Duarte
Fagundes