ONDE A INTELIGÊNCIA FOI ESQUECIDA
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15 de setembro de 2003

Para quem ama o cinema, ver filmes, quaisquer filmes sempre valerá a pena. Eu gostaria de ressuscitar o cronista de filmes Vinicius de Moraes, que um dia escreveu, com aquele jeito descansado de conversador carioca: “Dificilmente uma fita, por pior que seja, não me interessa e repousa.” Meu sonho de consumo: ver todos os filmes realizados no mundo. Para quê? Para discutir com as pessoas, defender os filmes que amo, vê-las defender os filmes que amam e que me parecem defeituosos.

A liga extraordinária (The league of extraordinary gentlemen; 2003), de Stephen Norrington, curiosamente não é um filme para quem lê muito. É um espetáculo para quem vê muito filme de Hollywood. A miscelânea de erudição literária exposta pelo roteirista Alan Moore é inútil para os amantes da literatura porque em algum lugar foi esquecida a inteligência de ler; numa rápida cena desta vertiginosa aventura uma personagem que se perde no rol de citações diz para as demais criaturas em cena e para os espectadores: “E me chamem Ismael”. É muito peso para Hollywood: recorrendo a Herman Melville e à famosa frase inicial do romance Moby Dick (1851), o ridículo acentua-se, passando por referências dispersivas a Julio Verne e atingindo o supra-sumo da bobagem na cena do retrato com Dorian Gray, o que era um dos grandes achados lítero-narrativos de Oscar Wilde se converte numa risível pasteurização.

Pobre Sean Connery, perdido com seu talento nesta empreitada. Sei que o filme tem lá seus defensores empedernidos. É a eles que dedico estas catilinárias. Então por que vejo estes filmes de óbvio espetáculo? É o direito sagrado de qualquer espectador: ver para poder desmontar a película em seus artifícios mal solucionados. Na manhã de sábado último, na sessão do Clube de Cinema de Porto Alegre, na Sala P.F. Gastal, um público assustado deu com alguns filmes brasileiros de curta-metragem que propunham cutucar o espectador acomodado (entre estes, um brilho incomum, Congo, 1972, de Arthur Omar); alguns desistiram logo depois que Chapeleiros (1982), de Adrian Cooper, o terceiro a ser exibido, se deteve na contemplação do trivial por minutos incômodos. De mim sei que a trivialidade de Hollywood, disfarçada por grandiloqüência formal, exige de mim mais paciência do que os provocativos filmezinhos brasileiros que derrotam os assistentes hollywoodianos de sempre.

Por Eron Fagundes