DE QUE SE TECE
UMA OBRA-PRIMA
Limite (1930),
o único filme dirigido pelo cineasta brasileiro Mário Peixoto quando contava
com escassos vinte e um anos, tornou-se um clássico mítico do cinema nacional.
Relegado ao desconhecimento de muitas gerações de cinéfilos, a obra-marco de
Peixoto foi recuperada nos anos 80 e, ao ser reexibida nas cinematecas do país,
dividiu as opiniões: houve quem visse ali uma estética do vazio e outros (este
analista aqui se inclui) amaram esta realização como se amam as escritas revolucionárias
do cinema. Em seu livro básico Brasil em tempo de cinema (1967) o ensaísta
brasileiro de origem belga Jean-Claude Bernardet, ao debruçar-se sobre Porto
das caixas (1963), rodado por Paulo César Saraceni, busca uma hipotética
afinidade deste trabalho do Cinema Novo com Limite, embora afirme: "Desconheço
Limite, que Mário Peixoto rodou no Rio em 1930, mas, através de algumas
fotografias, trechos de roteiro e certas declarações, pode-se imaginar algumas
afinidades entre os dois filmes." Daí se vê, ao ser referido por um comentarista
que nunca o viu (e sobretudo quando este comentarista é alguém do prestígio
de Bernardet), a influência mítica do clássico de Peixoto sobre o imaginário
cinematográfico nacional.
Agora é a vez do realizador
Sérgio Machado compor um documentário em torno da personalidade e da obra de
Mário Peixoto. O resultado é Onde a terra acaba (2001), que se insere
na onda de bons documentários do atual cinema brasileiro. O título é o mesmo
de um dos muitos projetos inacabados de Peixoto, aquele que seria seu segundo
filme e que teria na diva Carmen Santos uma forte mola propulsora. Machado costura
sua narrativa com trechos do estranho diário de Mário, um poeta meio esquizofrênico
quando se punha a escrever; a dicção é feita pelo ator Matheus Nachtergaele,
que ainda pode ser visto na atual sensação do cinema brasileiro, Cidade de
Deus (2002), de Fernando Meireles, como o único marginal branco. Machado
entrevista gente de cinema que fala sobre Mário: cineastas fundamentais como
Carlos Diegues e Nelson Pereira dos Santos, ou hoje prestigiados como Walter
Salles. Reflexiona sobre a inventividade do fotógrafo Edgar Brasil para superar
as dificuldades duma produção terceiromundista. Se na primeira parte do documentário
o filme Limite é a estrela, depois o que vemos são seus outros projetos
inacabados e a busca dum segundo filme que nunca vem: parece que ele não queria
mesmo realizar mais nada depois de Limite, seria para todo o sempre o
cineasta de um filme só, e isto não era uma frustração.
Onde a terra acaba serve,
entre outras coisas, para mostrar muitas vezes a matéria precária de que se
tece uma obra-prima.
Por Eron Duarte
Fagundes