19
de abril de 2004
Depois
de Cabra marcado para morrer (1984), que o ensaísta Jean-Claude
Bernardet considerou como um divisor de águas (nota de
apresentação de Cineastas e imagens do povo, livro
de Bernardet de 1985), o cineasta brasileiro Eduardo Coutinho
passou a ser tido por “o documentarista do Brasil”.
Alguns filmes que ele realizou nos anos subseqüentes, especialmente
Santo forte (1999) e Edifício Master (2002), aguçaram
esta condição de um diretor de cinema que sabe
captar como ninguém o instante da vida brasileira; Santo
forte é tão estritamente nacional que foi endeusado
por aqui e passou em brancas nuvens no estrangeiro.
A
pesquisadora de cinema Consuelo Lins trabalhou com Coutinho em
dois de seus filmes: Babilônia 2000 (2001) e Edifício
Master (2002). Ninguém melhor do que ela poderia escrever
este livro O documentário de Eduardo Coutinho; televisão,
cinema e vídeo (2003); sua paixão pelo cinema,
sua paixão pelo cinema documental, especialmente aquele
documentário em que Coutinho se tem esmerado desde Cabra
marcado é algo palpável, embora ela nunca abdique
da subjetividade, apaixonando o leitor que também viu
os filmes de Coutinho e partilha deslumbrado das descobertas
críticas que a análise de Consuelo vai revelando
com espantosa simplicidade.
Ao
associar certas questões de um filme tão remoto
quanto Crônica de um verão (1961), de Jean Rouch
e Edgar Morin, ao mergulho metalingüístico de Cabra
marcado (o copião que é mostrado aos protagonistas
da fita; as seqüências em que as pessoas se vêem
no copião é inserta na montagem final), Consuelo
vai descortinando os aparelhos críticos de que se reveste
sua análise. Similitudes e diferenças que há entre
um filme francês dos anos 60 e um projeto brasileiro dos
tempos da abertura política no país. Mostrar um
copião à pessoa filmada é uma técnica
que o neodocumentário alemão Não me venha
falar em destino (1979), de Helga Reidemeister, fazia com uma
certa perversidade. Nem gravata nem honra (2001), de Marcelo
Masagão, punha em cena este procedimento (ver-se no copião)
com uma curiosidade pela reação das pessoas. Em
Cabra marcado é mais do que isto: é um processo
interno de linguagem e uma estrutura dramática particular.
Analisando
filme a filme de Coutinho, Consuelo vai descosturando a linguagem
cinematográfica extremamente moderna do cineasta,
erigida a partir de Cabra marcado, em que a aparente realidade
direta do documentário cede lugar a uma realidade cinematográfica,
a realidade que vem do contato da câmara com a realidade
primeira para produzir uma outra realidade. Um documentarista
que não se fia na reprodução do real pela
imagem do cinema e aposta na construção de um real
diante da câmara é o visionário que Consuelo
Lins expõe diante de nossos olhos.
Por Eron Fagundes
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