20 de setembro de 2006
A última imagem de O maior amor do mundo (2006), o mais recente filme dirigido pelo brasileiro Carlos Diegues, mostra um primeiro plano da personagem de José Wilker, o astrofísico Antonio, nos braços duma garota como se fosse um bebê que estaria sendo acalentado por sua mãe; é um retorno ao útero o que o protagonista faz ao longo da narrativa de Diegues, e esta imagem surpreendente e um pouco chocante (um homem envelhecido que vira o bebê duma jovem mãe) é o fecho mais adequado para tudo o que o filme mostrou. Este plano final lentamente se esbranquiça antes de desaparecer a imagem e surgirem os créditos, como se as duas criaturas fossem alçadas ao céu: a jovem que aparece a interstícios na história veio buscar seu filho, um astrofísico brasileiro que veio ao Brasil receber uma condecoração e soube pouco antes do embarque que tem um tumor cerebral que vai matá-lo em breve; todo o esforço de Antonio para chegar a descobrir quem foi sua mãe biológica, morta de parto quando ele nasceu em 1950 no mesmo dia em que o Brasil perdeu a Copa do Mundo de Futebol para o Uruguai, vai desaguar nesta sofrida volta as aos braços de mamãe. Assim, os caminhos da vida da personagem são ligados de um extremo ao outro por duas tragédias, a tragédia coletiva de 1950 e a tragédia individual de um homem apanhado de repente pelo câncer.
Pode-se dizer que em O maior amor do mundo Diegues está em sua melhor forma; há uma seqüência em que ele executa uma montagem usando de cenas do presente narrativo (a personagem na atualidade correndo entre casebres em busca do cenário onde nasceu e onde morreu sua mãe) e dois espaços do passado (uma mulher dá precariamente à luz numa ambientação natural imunda enquanto imagens de arquivo e sons radiofônicos revelam o desenrolar de um jogo num estádio de futebol) chegando a um resultado audiovisual que só um cineasta tão maduro e em plena posse de seus recursos artísticos poderia atingir.
Depois da piada anedótica que foi Deus é brasileiro (2003), este novo filme de Diegues envereda por um rigor amargo de filmar e ver o mundo um tanto quanto inusitado em sua filmografia cheia de leveza. Deus é brasileiro foi um filme digestivo que podia ser interpretado como uma esperança brasileira representada pela ascensão do Partido dos Trabalhadores ao poder; O maior amor do mundo se converte num hino fúnebre da desilusão de um país que nem mesmo um operário no comando (lembram a cena de Terra em transe, 1967, de Glauber Rocha, em que o intelectual Paulo Martins questiona o espectador sobre o povo no poder, tapando-lhe a boca?) conseguiu salvar. Diegues é bastante duro, cruel, inflexível em passear com sua câmara pelos cenários mais indesejados e pobres do país, as favelas cariocas, onde um dia nasceu a personagem central de seu filme e onde esta mesma personagem vem a manter um rápido e tempestuoso romance com uma jovem negra. A alegria de viver que havia mesmo num filme que tratava de um tema mórbido como a velhice e era ambientado em cenários também deprimentes, como Chuvas de verão (1978), desaparece inteiramente de O maior amor do mundo, uma narrativa voltada para o “desabamento da alma” que referia o cineasta brasileiro Ugo Giorgetti a propósito de seu filme O príncipe (2002); como a personagem de Eduardo Tornaghi na realização de Giorgetti, o Antônio vivido por Wilker volta ao país no meio de um “exílio intelectual”, e, cada um à sua maneira, vivem a melancolia dos reencontros.
A textura de O maior amor do mundo guarda algumas semelhanças com uma película brasileira pouca referida e recente: Jogo subterrâneo (2005), de Roberto Gervitz. Falo de uma certa textura visual de aproximação. Talvez por ambos os filmes serem fotografados por Lauro Escorel isto indique um ângulo de visão ou uma cor próxima em algumas cenas; talvez os cenários escusos e escuros da cidade e o interior de alguns veículos coletivos (que é o móvel de Jogo subterrâneo) liguem trejeitos do filme de Diegues aos mesmos trejeitos no filme de Gervitz. É certo que é algo demasiado subjetivo: um sentimento que perpassa particularmente o autor destas linhas.]
José Wilker, na pele de Antonio, está muito circunspecto e bem dirigido, escapando inteiramente à malandragem interpretativa que marcou sua carreira depois que deu corpo à personagem de Vadinho em Dona Flor e seus dois maridos (1976), de Bruno Barreto. E os tipos que Diegues põe em cena são sempre impagáveis: Taís Araújo está solta em toda a sua juventude e sensualidade negra; Sérgio Britto como o velho maestro evoca um destes rígidos pais suecos que Ingmar Bergman tem desenhado em seus filmes; Hugo Carvana como um vileiro cego e pobre está exuberante; Stepan Nercessian, gordo e madurão, é outro signo de trajetória cinematográfica que começou como um ágil pivete carioca.
Provavelmente O maior amor do mundo vá ser valorizado mais no estrangeiro do que aqui. Pois dentro das características superficiais do espírito brasileiro, o filme não corresponde ao oba-oba nacional: seria menos brasileiro porque amargura não é conosco. Mas certamente é o mais belo trabalho de Diegues desde Bye, bye Brasil (1980), igualmente interpretado por José Wilker, porém um José Wilker ainda travesso e cheirando a Vadinho.
Por
Eron Fagundes