UMA VISÃO DINAMARQUESA EM TORNO DA AMÉRICA
 

 

22 de novembro de 2005

Os europeus, herdeiros do genovês quatrocentista Cirstóvão Colombo, ainda estão tentando descobrir a América. No cinema, várias gerações de cineastas, do alemão Fritz Lang ao também germânico Wim Wenders, buscaram suas realizações à maneira de Hollywood: inútil e frustradamente. Não é bem o que o dinamarquês Lars von Trier faz em sua trilogia sobre os Estados Unidos (que é produção multinacional européia); conservando sua consciência e sua estética nórdicas, Von Trier, um provocador por excelência, mexe em feridas polêmicas da civilização que visita com sua câmara irrequieta. Em Manderlay (Manderlay; 2005) o cineasta volta seu pensamento para a questão do racismo ianque, expondo com crueldade formal todos os truques milenares de opressão imposto pela sociedade americana; Manderlay, a localidade perdida num tempo e num espaço artificiosos e simbólicos onde os negros (anos depois da abolição da escravatura) ainda vivem em regime servil anacrônico, é o microcosmo metafórico da grande América vista com engenho por Von Trier.

No filme anterior de Von Trier, Dogville (2003), o assunto era o gangsterismo, encerrado por um banho de sangue final que simulava polemicamente o 11 de setembro como um símbolo de uma época de metamorfoses para melhor na acomodada sociedade americana. Nesta trilogia da América (até agora composta por dois filmes) o realizador funde cinema e teatro para erigir uma linguagem cinematográfica revolucionária: o cenário é contínuo, as marcações das peças (casas, portas, ruas) são ilusórias marcações no chão; um narrador-over interpõe-se constantemente na ação, como se estivéssemos lendo um romance (o filme é dividido em oito capítulos em Manderlay); aquilo que parecia um pouco o alemão Rainer Werner Fassbinder em Dogville, se dissolve em Manderlay, pois a montagem vai mais adiante na maneira de colar um plano no outro como se no próprio instante do corte a câmara estivesse em movimento: a precisão do corte capta o movimento de câmara.

Grace, a serviçal do primeiro filme convertida numa libertadora de cativos pretos em Manderlay, é agora vivida por Bryce Dallas Howard; o método de interpretação que Von Trier lhe impôs é o mesmo que ele extraiu de Nicole Kidman no primeiro filme. Willen Dafoe substitui James Caan como pai da protagonista, dando um toque excêntrico à criatura.

A maioria dos planos utilizados por Von Trier em Manderlay (como em Dogville) são planos próximos, onde a câmara se cola ao ator (do chão para o rosto) determinando o modelo interpretativo; é um dialogar com o cenário do chão por parte do intérprete, algo que se contrapõe àquele “dialogar com as nuvens” do corpanzil de Orson Welles identificado por François Truffaut em A marca da maldade (1957): se Welles caminha para a câmara, fitando-a, arrogantemente, os seres de Von Trier deixam que a câmara caminhe para eles e então a olham suplicando os gestos.

Seja de que maneira se receber ou analisar um filme como Manderlay, uma coisa é inquestionável: a constante inquietação de artista do dinamarquês Lars Von Trier.

Por Eron Fagundes

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